PORRE
Luís Augusto Marcelino
Estou morrendo de sede. E a poucos metros
de mim há um filtro. Daqueles de barro, São João é a marca,
se não me engano. Se eu tivesse uma fábrica de filtros nunca
colocaria este nome. São João. Por que São João? Agualimpa,
Saudetotal, Vida. Qualquer nome seria mais apropriado. Vai saber
por quê. Tenho sede mas não consigo me levantar. Não sei ao
certo, pelo menos até o momento, o que me aconteceu ontem a
noite. O fato é que não consigo mexer a cabeça. Ela dói. Mais
do que em outras vezes. O que será que fiz, meu Deus?! Esta cama
não é minha, isto eu percebi. Meu corpo sente os dissabores de
uma noite mal dormida. Este quarto também desconheço. Isso já
tinha me acontecido nos últimos anos. Acordar num lugar que nem
imaginava onde era não podia ser classificado como uma novidade
na minha vida. Mas hoje tem algo estranho. Não consigo erguer a
cabeça. Nem virá-la. Não consigo nada pra dizer a verdade. O
filtro continua lá, mudo, inerte, sem falar uma só palavra.
Continuo com sede, acho que exagerei na bebida. De novo. Vivo
exagerando, não tomo jeito. Minha mãe reclama e fala para o meu
pai. Seu Joaquim não diz nada. Apenas balança a cabeça,
concordando com mamãe. Meus olhos ainda conseguem avistar o
maço de cigarros no criado-mudo. Deve ter umas três ou quatro
unidades, mas sou incapaz de esticar o braço à minha direita e
pegar o cigarro e a caixa de fósforos. É esta a sensação
principal que estou sentido: invalidez. O quê me deixou assim?
Não sou desse jeito. Já curti noitadas de arromba e sempre me
ergui no dia seguinte com a disposição de um atleta. Com a boca
amarga, mas disposto. Notei que a televisão está ligada. Não
agüento mais esta coisa de guerra. Bin Laden que vá pra casa do
caralho! Com o Bush à tiracolo. Fodam-se os dois. O enviado da
Globo em Nova Iorque insiste em dizer que a situação está
insustentável. Insustentável é minha vontade de sair desta
cama molenga e me livrar daquele lençol florido de mal gosto.
Mas não consigo. A única parte do meu corpo que se movimenta
são os cílios e os olhos, que vasculham o ambiente atrás de
alguma pista para explicar o fato de eu estar aqui. A TV tem um
timer. São duas e trinta e pouco e, embora esteja escuro,
suponho que seja da tarde. A primeira lembrança do dia anterior
surgiu de repente.
- Onze horas eu passo lá, Jonas!
- Meia-noite. Meia-noite é melhor. Vê se não se atrasa!
Ricardo sempre foi meu melhor amigo. Desde os tempos do ginásio
éramos cu e calcinha - como dizem. Ganhou o carro do pai ao
fazer dezoito anos. Imagino que, se o Seu Arquimedes soubesse que
o filho era chegado a uma farinha, jamais colocaria o filho no
volante de um automóvel. Mas Ricardo sabia disfarçar. Colocava
um pedaço de cravo na boca para esconder o bafo do uísque e da
maconha. E, não sei como, o pó não lhe trazia as mesmas
sensações que eu sentia quando saíamos da faculdade e eu dava
um tapinha. De vez em quando. Ricardo, não. Era consumidor
costumaz. Pedia licença aos professores e dava uma cafungada no
banheiro. Todo santo dia. Mas voltava para a sala como se tivesse
ido tomar um guaraná, exceto pelos olhos vermelhos e vívidos.
Combinamos de nos encontrar no bar do Rodrigues, disso eu me
recordo. Ele chegou quinze minutos antes do previsto, para meu
espanto. Sempre se atrasava, o Ricardo. Parecia tranqüilo. Pediu
uma cerveja light, coisa pouco comum. O normal seria mandar
soltar uma vodka ou um uísque. "Vou pegar aquela mina hoje,
Jonas! Pode apostar". Meu amigo estava caído pela Lúcia
Helena. Ela levaria a irmã ao barzinho. Não sabíamos, àquela
altura, em que bar aportaríamos. Iríamos para a Henrique
Shawmann, isto era certeza. Eu tinha cinqüenta reais. Ricardo,
um talão de cheque e o cartão de crédito. E um carro. Bancaria
tudo, ele prometera. Alguém bateu na porta. "Senhor?!
Senhor?!" Não tive força para responder. A mulher
desistiu. O tempo insistia em correr...
Quando completei vinte anos fiz uma festa em casa. Chope,
vizinhança, os amigos da faculdade, os amigos da rua, as
putinhas do bairro. Acho que tinha quase cem pessoas. Fora a
parentada. Meu tio Edmundo, que vivia trôpego, veio de Itaquera.
Minha avó Lourdes - a última das avós - tomou cinco copos de
vinho, que eu vi. Ricardo chegou bem tarde. Trouxe-me uma camisa
do São Paulo autografada pelo Raí. "Puta que o pariu,
Ricardo!" - agradeci. Perguntou onde era o banheiro. Foi dar
sua cheirada habitual. Quando voltou, acendeu um cigarro. Eu
estava louco para fumar, mas não tive coragem. Mamãe sempre
soube que eu fumava, mas nunca intercedeu. Porém, eu era incapaz
de baforar perto dela. Esqueleto - que era o apelido do Ricardo -
marcara a ponta com as minas naquele dia. "Sábado que vem,
Jonas... Tudo certo, é pimba! Pimba, cara!" Respondi que
tudo bem. Preparei-me durante o resto da semana. Comprei roupa
nova. Tênis. Cortei o cabelo. Diziam que a irmã da Lúcia
Helena era dez vezes melhor do que ela. Só tinha um problema:
conquistá-la. Nunca fui bom em conquistas. Tive de ir para a
zona para transar a primeira vez. Minha mãe serviu uma rodada de
batata portuguesa. Sou louco por batata portuguesa.
. . .
O telefone tocou. Três, quatro, cinco
toques e não atendi. Desistiram. No raio da minha visão, o
filtro São João, um copo americano e o maço de cigarros.
Pensei em pegar um deles. Mas fui incapaz. Meu corpo não
respondeu às minhas vontades. O som da TV me emputeceu. Só não
tenho forças para desligá-la. Passados alguns minutos lembrei
do barzinho na Vila Madalena. Música alta. Mulheres estupendas e
nós quatro pedindo uma mesa. Ricardo molhou a mão de um dos
funcionários e sentamos. Quase meia-hora depois de chegarmos. A
música estava alta. Ricardo arrastou Lúcia para dançar e
fiquei sozinho com Ana Paula. Não sei dançar. E o jogo de luzes
tornava minha visão confusa. Olhava a garota e não sabia ao
certo o que falar. Podia lhe perguntar o que achava da guerra
eminente. Ou o que ela achava de estar ali, tomando suco de
abacaxi, com um cara que mal conhecia. Podia lhe fazer dezenas de
perguntas, enfim. Mas calei-me. Simplesmente me calei, como
tantas outras vezes. Acho que puxei isso do meu pai. Calar-me
quando sou incitado a alguma ação.
Meu diálogo pobre com Ana Paula é minha última lembrança. Por
que estou aqui?
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