O MUNDO ALÉM DAS PALAVRAS
Larissa Meo

Todos dormem. Abandonei-me ao sono, mas ele não veio e por toda a noite contei estrelas e carneirinhos. Ora estrelas, ora carneirinhos e assim foi até o sol esclarecer as idéias, me mostrar que o dia está começando e que além do sono vou ter de conviver com a preguiça. Enquanto buscava o estágio do sono profundo virando de um lado para outro na cama, o meu consciente insistia em resgatar uma nova história fantástica a cada segundo. A esta altura dos acontecimentos minha cabeça parecia ser comandada por um liquidificador industrial que produzia miscelâneas do tipo coruja vira pavão e lobo se transforma em pastor, desde que seja politicamente correto e não como as ovelhas.

É claro que o meu estresse psicológico teve início com aquela batida de carro em frente ao outdoor de profecias bíblicas. Para o meu espanto o homem que trombou em mim parecia Nostradamus, ou um Enéas melhorado. Aquela barba não me era estranha apesar do retrato falado do sujeito ter mais de 500 anos. Com dor de cabeça e prejuízo no bolso achei melhor acreditar na coincidência e nas forças sobrenaturais. Se político brasileiro pode porque eu não posso?

A pé, descabelada e quase tendo uma crise nervosa decidi encarar a situação revivendo meus tempos de estudante sem lenço, nem documento e assim fui para o shopping de ônibus. Estava tão sem prática de passageira que quase cai sentada no colo de um homem com camisa havaiana. Em compensação, após 10 anos os motoristas conseguiram se manter barbeiros e mal educados. Pensando bem os tais predicados devem ser pré-requisito para a profissão. No ônibus, a cada nova curva eu – a madama como um homem me chamou - era a estrela do ônibus. Depois de um tempo fazendo malabarismo para me manter em pé consegui um lugar para sentar e apreciar a paisagem. Cinco minutos depois o ônibus foi assaltado por dois rapazes de 20 anos.

Sem carro, sem bolsa e descabelada fui parar na delegacia. Não sou uma pessoa de grandes leituras e interpretações, mas a Torre de Babel descrita na Bíblia parecia ser mais organizada do que aquele DP. O cenário era de confusão. A minha cabeça latejava e eu só conseguia pensar no quanto iria gastar entre tempo e dinheiro para bloquear o talão de cheques, dar baixa nos cartões de crédito, refazer os documentos e atualizar a agenda eletrônica. O motorista gritava, o cobrador falava que não reconhecia ninguém, uma velhinha passava mal, outra mulher gritava que precisava buscar o filho na escola. Mas quem mais chamou minha atenção foi o Genésio.

Ele chorava e gritava e depois chorava e gritava de novo. Perguntei a ele se o ladrão tinha levado o salário dele todo. A resposta foi negativa e aí ele chorou ainda mais. Perguntei então se os cartões de crédito, talão de cheques e documentos haviam sido surrupiados. Ele estava histérico e tinha chiliques. Foi então que pedi um copo de água com açúcar e o pessoal da delegacia disse que lá não tem destas coisas não. Antes de o Genésio ter um novo ataque pedi para que ele se acalmasse.

Tempo depois ele começou a gesticular. O Genésio era mudo e se comunicava pela linguagem de sinais. Ele gesticulava e a gente tentava interpretar. Estava mais para um jogo de adivinhação do que para uma tradução literal, mas foi o que deu para fazer.

Aos poucos conseguimos entender que a grande preocupação dele não era o dinheiro, o talão de cheques e todos os cartões de crédito. A preocupação dele era o Carlito, um papagaio bom de prosa que estava sozinho em casa. Genésio não se conformava que o amigo falante iria ficar sem sua companhia por algumas horas, já que os ladrões levaram também até a chave da casa dele.

Saí da delegacia pensando na estranheza da vida e em quão engraçado era o fato de pessoas que passaram pela mesma experiência serem capazes de reagir de modo tão diferente. Sem fazer trocadilho com o comercial do refrigerante, mas a vida é isso aí.

fale com a autora

Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.