A
MONTANHA SAGRADA
Alberto Carmo
Pernoitou no acampamento 3. Se tivesse sorte, seria um amanhecer de céu limpo, sem borrasca. Pelo rádio, entrou em contato com o acampamento base:
- Edmond! Edmond! Responda!
- Prossiga! - respondeu a voz do amigo.
- O tempo. Como vai ser? Conseguiu conexão com Londres?
- Positivo! Perigo de deslizamentos. Ventos vindos da face sul. Desça imediatamente!
Desligou o aparelho e se dirigiu ao guia:
- Babu, traga-me gelo. Vamos tomar chá.
O sherpa, obediente e submisso, deixou a barraca minúscula. Voltou com o gelo picado. Logo, o fogo brando aquecia a vasilha. A altura, a pressão, faziam do ritual do chá um processo longo, interminável. Encostavam as mãos congeladas no recipiente onde o gelo estalava paciente. O rádio soava em desespero.
- Não vai falar como eles? - perguntou o sherpa, enquanto partia um naco de biscoito.
- Não, Babu. Querem que eu volte. Não vim para voltar.
- Mas a tempestade...
- Não importa, podem estar enganados.
- Mas podemos morrer!
- Vou sozinho, você fica aqui me esperando.
O chá quente animou-lhes os músculos. O sherpa concentrou-se e começou a cantar em sons desconhecidos dele. Sabia-lhe o idioma, mas não o entendia. Permaneceu calado, em silêncio. Percebeu que o sherpa pedia proteção aos deuses. Babu tirou do bolso um punhado de ervas e deitou ao fogo. A breve fumaça logo encheu a cabana. Quis tossir, mas seria um desagrado.
- Respire fundo! - o sherpa pediu com bondade.
Ele obedeceu. Sentiu-se adormecer e perdeu a consciência por um tempo que não soube contar. Viu-se perto da catedral de Westminster. Uma turba de jovens brandiam cartazes e gritavam. A multidão se acotovelava insana. Homens e mulheres moviam os lábios em palavras de ordem. Os olhos vítreos mostravam que falavam sem pensar, sem perceber. Sentiu uma dor profunda no peito, um grito que se abafava como um adeus desesperado. Queria sair de lá, mas uma barreira de braços cercava-lhe os caminhos. A sirene da polícia já se fazia ouvir, o som dos vidros despedaçados chegavam-lhe estridentes.
Um jorro de braços arrastaram-no por longos metros. Havia silêncio e mirra no ar. Uma melodia distante trazia-lhe novo ritmo aos ouvidos. Sentia uma paz ensurdecedora, como se o cérebro fosse uma granada preste a explodir.
Os olhos profundos do sacerdote hipnotizavam-no. Movimentava os braços em semi-retas, espargindo um líquido semiprecioso. Ouviu-lhe longa gargalhada; um riso de abismo que lhe fugia.
- Babu! - gritou.
Levantou a cabeça e se viu sozinho entre sons agudos de ventos cortantes. Rodou os olhos pela barraca a procura de...
- Babu! Onde está?
O silvo do vento apontou-lhe um rasgo na cabana. Uma asa que batia ao sabor do vento. Arrastou-se até lá; havia sido rasgada por objeto cortante. Nem o menor sinal do sherpa, nem pegadas que o vento poupasse. Fechou o vão, por onde a neve invadia. Buscou a caneca de chá congelada. Encontrou uma pequena folha, em formato ligeiro. Levou a mão ao peito e sentiu que lhe haviam colado uma folha de papel.
- Mastigue! - estava escrito em letra fugidia.
Levou a folha à boca e mastigou. Era amarga, depois doce, depois áspera. Mastigou sem pensar em nada. A saliva foi-se esverdeando sem que percebesse. A tempestade amainou.
Saiu da barraca e afastou o gelo da barba. O sol brilhava imune. O céu impunha-se em desafio. Ergueu os olhos e viu o cume distante; trezentos metros talvez, em caminho quase vertical.
Caminhou cada passo como o último, cravava as mãos na neve suave e subia. Arrastava-se pela encosta em velocidade crescente - pouco faltava. Estancou, esgotado, ofegante. Enfiou o rosto no tapete branco. Sentiu uma mão agarrando-se à dele. Um gesto forte, decidido, e se viu no topo da montanha. Abriu os braços em desesperada alegria, rodou o corpo, dançou àquela luz.
- Bem-vindo!
Voltou-se e viu um velho de cócoras, de poucos cabelos brancos e longa barba afilada. Não tinha mais voz, nem forças nos braços. Caiu de joelhos e chorou.
- Babu! Babu foi levado...
- Ele está bem! - respondeu uma voz já tênue. - Tome esse chá, vai lhe fazer bem.
Sorveu cada gole como uma prece. O velho se levantou e começou a cantar melodia desconhecida. Sabia que era um hino, mas não reconhecia país.
- Agora vá, meu amigo.
- Você não vem? - perguntou.
- Vou logo depois. Vá agora, antes que chegue a tempestade.
Olhou para o céu ardente, não via nenhum sinal de tempestade. Riu um riso silencioso e começou a descida. Desceu não mais de 30 metros e se voltou para o cume. Não havia nada, apenas uma nuvem nervosa, que lhe soprou um rastro de gelo.
O corpo foi jogado ribanceira abaixo. Parecia-lhe ouvir os ossos sendo partidos em farpas que lhe varavam as costelas. A dor no peito fez-lhe perceber uma hemorragia fatal. Deixou-se entregar aos movimentos e aguardou a morte.
Quando acordou sentiu um gesto firme a lhe calar o movimento da cabeça. O vulto à sua frente foi se aclarando. Babu punha-lhe algo à boca.
- Mastigue! - dizia bondoso.
- O velho, o velho! - não conseguia dizer mais que isso.
Uma mulher ainda jovem, de olhos escurecidos e voz confusa apontava-lhe o dedo. O cartaz que trazia na outra mão era claro: - Power to the people!
Sentou-se na calçada. Quase engasgou com a ingenuidade da frase hilariante. Deitou-se afinal. O sono e a preguiça da longa jornada impediam-no de rir. Sentia vertigem nas alturas.
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