VAITENDÊ
Paulo Panzoldo

Toda sexta-feira era ba-ta-ta. Podia contar que a partir das sete da noite não tinha mais sossego. Se pudesse esganar o Mr. Bell pagaria todas as penas necessárias e ainda pediria mais um tempo no sossego da Casa de Detenção de São Paulo. Naqueles tempos havia dias em que dava uma certa vontade de ir preso. Hoje as sextas-feiras já não são mais as mesmas e nem a Casa de Detenção possui o mesmo sossego de antes do acesso ao telefone pelos detentos. Adeus, esperança. Era chegar do trabalho e o maldito só parava de tocar no domingo à noite. Com a população residente por aqui - eu, esposa, quatro filhos, uma irmã de criação, dois cachorros, agregados, agregadas, os só para o almoço, os só para o jantar, os só para dormir e um periquito australiano - a neurose era esperada, afinal o preço de uma linha era alto e ainda corria-se o risco de pagá-la e ficar anos esperando a instalação. Eram tempos difíceis, como sempre foram os tempos paulistanos, porém eu ainda era jovem o suficiente para chegar em casa moído de cansaço, jogar os inexplicáveis paletó e gravata - que os executivos ainda teimam em usar com esses verões - no primeiro canto vago que aparecesse pela frente e tentar relaxar. Doce ilusão.

Aí paizão, seguinte: se me ligarem dá um perdido! - esse aqui é o Rafa, meu segundo filho. Seria torturante demais descrever o povo todo querendo falar ao telefone ao mesmo tempo.
Perdido?
É, perdido.
Mas...

Perdeu-se lá pra dentro. Toca o telefone:

Alô! - esse sou eu atendendo.
Rafa? - ele tem a voz muito parecida com a minha ao telefone.
Não, aqui quem fala é o pai dele.
Falaí tio, tudo a pampa?
Quem está falando?
Sô eu tio, o Rafa taí?
Não, o Rafa está..., quer dizer não está... o Rafa não está!
Como não, tio? Cabei de falá com ele gorinha mesmo?
Não, ele não está!
Então fala pra ele queu liguei, ta bom, tio?
Ta, mas quem está faland...

Clic. Desligou.
O Rafa decide "se achar".

Aí pai, alguém ligou pra mim?
Ligou, mas...
Quem ligou?
Sei lá, não falou.
Era homem?
Não, mulher. Parecia mineira.
Intão já sei. Você deu o perdido que eu pedi?
Perdido?... Ah sim, dei sim, mas acho que não colou muito não.
Fámalnão, relaxaí paizão.

Menos de um minuto e o maldito toca de novo. Estendo o braço para atender e levo um chega-pra-lá do 'de cujus'.

Alô! - é o "perdido" falando.
... - é o interlocutor.
Falaí meu, tudo a pampa?
...
Pampíssssima!
...
To ligado! Ta no esquema?
...
Elas toparam? Legal. Intão vo chegando e a gente se vê por lá.
...
Não, meu pai deu um perdido nela. - olha pra mim e ri.
...
O véio ta pampa.
...
Téintão!

Desliga.

Pai, ele mandou um bração procê.
Quem?
O Zé.
Que Zé?
Da geo.
Geo?
Seguinte pai pintou um esquema aí cumasmenina e...
Esquema com quem?
Cumasmeninas aí e vou ter que dar um perdido aí na...
Já sei. Nela!
Nela?
É, naquela que ligou há pouco.
Isso paizão, seguraí que o esquema é a pampa.
O esquema é a pampa, mas qual é o esquema?
É o Zé, pai, arranjou umas meninas aí que não sei quê e vou ter que dá um perdido...
Nela!
Iiiiisssso, paizão. Fui!
Foi pra onde?

Foi. Foi mesmo!

Adivinha quem está tocando agora? Ele mesmo, o aparelhinho do Mr. Bell.

Tio?
É!
O Rafataí?
Ele foi... quer dizer... ele não está.
Como não, tio?
Não ta não, minha filha, ele...

O "perdido" se arrepende e volta:

Péraí pai, eu atendo! - arranca o fone de minha mão e - Oi, tudo a pampa?
...
É que eu tava lá, tinhaí um não sei quê com o Zé e...
...
Intãotá! Te encontro lá.

Desliga.

Pai, se o Zé ligar, dá um perdido nele! Fui.

Dessa vez, foi mesmo. Vaintendê! Mas tem uma coisa: desde que me aposentaram, eu simplesmente não atendo telefone. Tendeu?

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