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CONTOS COLETIVOS

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MUITOS ANOS DE VIDA
o aniversário de Maria Regina
 
 

Dentro da floricultura, Maria Helena tentava escolher um vaso de flores para levar de presente para Regina. Os saltos altíssimos que usava, a gritaria dos meninos dentro do carro estacionado, a luz piscante da floricultura, tudo parecia contribuir para que a decisão fosse impossível. Mas esse não era o principal problema.

Helena sentia as ondas de rancor mais próximas de sua garganta cada vez que visualizava mentalmente o rosto da irmã. Apenas um ano mais velha do que Regina, não conseguia se conformar com o fato de que, embora sempre tivesse sido a mais calma, correta e obediente das filhas de Gertrudes, a outra é que fosse a queridinha da família e, principalmente, da mãe. Será então que para ter algum valor precisaria arrumar amantes, destruir famílias e sair vestida com penachos ridículos no carnaval?

Uma lágrima embaçou a visão das prateleiras repletas de flores coloridas ao pensar nisso. Mesmo que quisesse, nunca seria como Regina. Não era tão bonita e jamais seria tão sexy quanto a irmã. Com raiva, escolheu duas dúzias de cravos vermelhos e mandou o rapazote embrulhar:

- Em papel de seda. Roxo.

* * *

Enquanto isso, no aeroporto de Congonhas, Ercília, num vestido amarelo inignorável, enormes óculos de sol combinando, peruérrima, rebolava pelo saguão dizendo em alto e bom som:

- Larga de bobagem, Cunha! Você não diz o tempo todo que tem "aquilo" roxo?

Atrás dela, carregando uma mala e uma porção de sacolas, Cunha suplica:

- Que é isso, Ercília, fala baixo...

- Depois fala mal do Cesinha*... na hora de querer convencer alguém que é macho, usa uma frase do Collor!

Cunha se irritou. Falar mal do homem já era demais. Largou tudo o que carregava ao chão pra segurar no braço de Ercília:

- Ercília, presta atenção. Eu não quero que você vá a essa festa, está entendendo? Não vê o papelão? Você roubou o marido da mulher e agora, na maior cara de pau, vai aparecer na festa dela? É ridículo, é... desnecessário... a gente podia ir pro meu apartamentinho e...

- Nem morta eu perco essa, Cunha, nem morta! Depois, que é que eu vou fazer com o aparelho de ginástica que eu comprei pra gorduchinha? Ela vai adorar o presente, você sabe. E, pro teu governo, eu fui convidada, você sabe que ela nem ligou muito pro que aconteceu no Natal.

- Ercília...

- "Aquilo" roxo, larga de ser medroso - ela disse virando-se para a saída outra vez.

Cunha ficou vermelho. Ela havia mexido com seus brios. Fez uma típica banana collorida, pegou as coisas do chão e correu atrás dela, gritando a plenos pulmões:

- Medroso, é? Quer saber? Eu também vou!!

* * *

Maria Regina saiu do cabeleireiro, ajeitando as mechas que o vento teimava em desarrumar. Estava se sentindo bem, a maquiagem ressaltava os belos olhos azuis... "você tem olhos de gata" ... Raul, ah, não queria pensar em Raul. A idéia de fazer quarenta anos era desagradável, como se aquela passagem para os "enta" a tornasse menos desejável, menos mulher.

O carnaval se foi, acabou a loucura... não queria ficar velha. Falando nisto, tinha que passar na farmácia e comprar o remédio da mãe. Ela andava tão estranha ultimamente! Aline dissera "Vovó tava uma comédia lá no camarote da Sapucaí. Acho que se apaixonou por aquele tipo meio cafajeste, o tal de Alfredo, que agora vive colado no tio Nestor. Não tirava o olho dele, dizia que era a cara do vovô no tempo do Cordão do Bola Preta. Pode? Deve ser esclerose. Quase morri de vergonha com o mico que a gente pagou. Essa família é toda pirada..." Será que ela tinha razão? Maria Regina não se sentia "pirada", ao contrário, achava sua vida tão certinha, bem fizera o panaca do Cunha, fugindo com a Ercília. Ela não tinha coragem de assumir o Raul... é bem verdade que o Raul estava longe de demonstrar esta paixão toda por ela. Depois do fogaréu do início, no tempo do proibido, agora andava esquivo. Precisava arrumar um outro amor. Pensou em Laerte, o gladiador do carnaval. Por onde andaria?

Lembrou do "cafajeste", o Alfredo, sambando na avenida, a ginga de malandro, olhar de perdição. "a gente se sente nua diante dele" reclamara a Domitila, adorando. Alfredo... Raul... Laerte... Por que o tempo não parava no momento mágico do amor? Por que a vida passava tão depressa? A areia escorrendo na maldita ampulheta, a juventude indo embora na enxurrada, a paixão recolhida do varal como roupa usada.

"Quero ter vinte anos outra vez", pensou, enquanto entrava na farmácia quase vazia. "Quero a chance de fazer tudo de novo". Não casaria com um tipo rídiculo como o Cunha. Na verdade seu casamento fora mais uma fuga da matriarca Gertrudes. Naquele tempo a mãe era dominadora... uma mulher tão forte! Pediu o remédio, sentindo uma dor no coração. Como a velhice nos deixava desamparados, frágeis... queria de novo aquele colo seguro, aquela voz decidida. Não conhecia esta estranha cheia de reminiscências. Sua mãe vivia hoje mais no passado do que no presente. Ontem estava mais próximo do que hoje e amanhã era talvez. "Mas eu estou viva!", pensou apanhando o embrulho e se dirigindo ao caixa. "A vida é rápida? Pois eu serei mais. Hoje é meu aniversário! Vou enfrentar o panaca do Cunha e a assanhada da Ercília, vou rir das infantilidades dos garotos, aprender com mamãe a não deixar o tempo intacto ah!, sim eu vou fazer uma festa em grande estilo... e se tiver Raul, e se tiver Laerte... não importa! Hoje eu vou ser a única! A Regina! A rainha! E no meu jogo de xadrez ninguém vai me comer impunemente!" Ia saindo da farmácia tão entretida nos seus pensamentos que nem reparou quando uma sombra se aproximou por trás e uma mão se insinuou na sua cintura:

- Regina!

Era bom demais para ser verdade...

Ninguém a chamava assim - "Regina!" - com aquela voz de locutor de rádio da Roma Antiga. Foi fácil adivinhar que era Laerte, o gladiador. Aquele cheiro de perfume francês era inconfundível. Lembrou imediatamente dos amassos no Rio de Janeiro. "Bom foi o final, onde a quarentona aqui e o musculoso acabaram tendo um rolinho". Estava perplexa. O ataque de mudismo habitual para esses momentos de emoção foi inevitável. Ele estava ali e puxando assunto e Regina ouvia as palavras longe, em rotação lenta.

- Tens um rosto de menina. O tempo parece não passar para você, e seus olhos azuis são os mais brilhantes que já vi.

Mas ela sabia que o tempo passava. 40 anos é uma idade ingrata, só se fala em menopausa e dor nas costas. Não que isso fosse aplicável no seu caso. Pensou no vaporoso vestido branco que usaria à noite, sentiu-se linda e no controle dos sentimentos.

E agora, o que dizer pra ele? Que sonhou muitas noites com suas mãos fortes e com aquelas correntes tocando-lhe a pele branca? Que estivera justamente pensando nele há poucos minutos? O remédio caiu no chão e em meio à pequena confusão que fizeram para recolher a caixinha ela recuperou a voz e aproveitou a oportunidade para fazer o convite.

- Laerte, hoje é meu aniversário e vamos dar uma festinha. Nem pergunte quantas velinhas vou apagar, que não digo e nem vai combinar com a "cara de menina" que você acabou de falar. Queria muito que você fosse, perdi seu telefone, seu endereço, não vamos nos perder novamente. Não consigo falar muito, que dia de aniversário mexe com minha emoção. E não vai ficar de bola cheia, mas te encontrar hoje já foi um presente. Vai ter até pista de dança! É uma festa íntima, parentada e alguns poucos amigos. Do Rio de Janeiro virão o Cássio e a Domitila, além da Ercília, lembra dela? Aquela que no carnaval estava vestida de onça amarela?

Parou para respirar enquanto Laerte caía na risada.

* * *

O que a Maria Regina chamava de festa íntima era um acontecimento social no "Anos Dourados". A iluminação em tons de âmbar criava uma atmosfera nostálgica, como se "Os Fevers" fossem chegar a qualquer momento. O burburinho já tinha tomado conta do ambiente, por isso ninguém notou quando Maria Helena e Bastos chegaram discutindo.

- Se era pra vir com esse bode amarrado, devia ter ficado em casa. Eu não fazia a mínima questão.

- Claro que não fazia. Você só faz questão do teu chope, meu bem. Dos teus amigos, do teu carro. Disso aí você faz questão. Esquece que sou uma pessoa, que tenho desejos - ia dizer "que sou uma mulher" mas aí já era humilhação demais, lembrar o marido que era uma mulher.

- Desejo de ficar de tromba? Tô pra ver outra mulher que goste tanto de ficar de cara feia como você gosta. Não consigo te entender...

- Cala a boca e dá um sorriso que a cretina da minha irmã vem vindo... Maria Regina! - um sorriso instantâneo, mas absurdamente falso, brotou na boca pintada de malva natural de Maria Helena.

- Que bom que vocês chegaram! Obrigada pelas flores, são lindos os crisântemos, adorei! Ia falando e encaminhando o casal à mesa da família.

Era mesmo uma ignorante. Não entendia sequer uma ironia, não distinguia um cravo de um crisântemo. Se ela tivesse mandado um abacaxi a idiota ia achar que era uma bromélia. Maria Helena remoía toneladas de mesquinharia, que ia engolindo com goles de pró-seco.

There´s a Kind Of Rush embalava casais na pista de dança e o Cunha aproveitava pra descer a mão pelo decote da Ercília.

- Eu não tenho pressa nenhuma essa noite...

- Cunha de Deus! olha essa mão, dona Gertrudes pode ver... Você está me saindo melhor do que a encomenda...O que você achou do jeito que a Maria Regina nos tratou? Eu esperava outra coisa.

- Sinceramente, eu não achei que ela fosse nos receber tão bem. Parece que está mudada, mais segura, mais bonita.

- Ah, mais bonita? Quer dizer que o senhor reparou?

- De longe, preciosa, de longe. Porque de perto assim - e puxou Ercília ainda mais - eu só quero ver você.

Como se o DJ do salão soubesse a história do casal que namorava na pista, soltou "você bem sabe, que eu não lhe prometi um mar de rosas, nem sempre o sol brilha, também há dias em que a chuva cai..." que a Ercília ia cantando baixinho no ouvido do Cunha, que sorria, deliciado. Como Ercília podia ser adorável quando queria...

* * *

A luz fraca dava uma tontura boa em Domitila. E as três doses de vodca também contribuíam para o efeito. Qualquer coisa era melhor do que ter consciência do Cássio dançando. Na verdade, a culpa não era dele. Quando se conheceram ela já soube que o que mais a atraía era aquela ausência de charme. Que ele compensava prontamente com outras qualidades que ela sabia reconhecer. Isso até o carnaval passado. Depois do rápido - e ultra secreto - affair com Alfredo, ela jamais tinha sido a mesma. Que homem era aquele? Aparecia e desaparecia como um fantasma. Mas que assombração estupenda, ele era! Por isso ela estremeceu quando reconheceu a silhueta que atravessava o hall de entrada naquele momento, indo ao encontro de Maria Regina.

- Deslumbrante, Maria Regina! Uma ninfa! - e despejou seu sorriso arrasa-quarteirão.

- Ah, Alfredo, você é tão gentil que me encabula. Venha, vou te levar até o Tio Nestor. Foi levando o homem pela mão, quando viu Laerte se aproximar. Sem titubear, apontou a mesa para Alfredo e foi ao encontro do convidado, que estava impecável em seu traje esporte chique e com um calhamaço de rosas amarelas nos braços.

- Laerte, que coisa linda! Vamos sentar... espera, deixa eu entregar as flores para alguém colocá-las na água.

Olhou em volta e viu Aline, que zanzava pelo salão com uma saia ridiculamente pequena. Com um gesto chamou a sobrinha, que correu para perto da tia e saiu relutante com as flores nos braços, morrendo de vontade de ficar e descobrir quem era o "esporte fino" de perfume forte que trouxera flores em quantidade suficiente para decorar um cemitério inteiro.

- Lindeza, apenas por curiosidade, quem é o sujeito de camisa azul perto do bar? Devo ir até lá tirar satisfação ou você conhece?

Regina voltou a cabeça e sentiu uma palpitação - era Raul que estava no bar.

- Pode deixar, Laerte, ele era meu... primo, não, ele não era, ele é meu primo. É o Raul, sobrinho-neto da minha mãe. Esquece. Não é ninguém importante.

* * *

Cunha até que estava bastante excitado e agradavelmente lisonjeado com a reação de Ercília. Ela estava particularmente carinhosa e romântica nessa noite, mas ele já não se iludia mais. Sabia que Ercília tinha seus altos e baixos, e para falar a verdade, mais baixos do que altos. Ela o tratava mal, o espezinhava. Tinha chiliques freqüentes. E quando o tratava melhor, como nessa noite, ele ficava como que agradecido. Só faltava lamber-lhe os pés. Inseguro como era, fora à festa por receio do comportamento da companheira. O que não pensariam os outros? Sai de casa com uma amante e se dá mal? Não, ele deveria era estar por cima. Trataria essa noite mesmo de reverter esse quadro. Enquanto dançava, seus olhos não desgrudavam de Maria Regina, seguiam-na por todos os lados. Já tinha notado como ela estava bonita, com melhor aparência, mais jovial. Será que isso que sentia era ciúme? Prestou atenção no modo como os homens a olhavam - Alfredo, Laerte, Raul. Reparou nos demais casais presentes. Nenhum casamento era perfeito. Percebeu as farpas trocadas por Maria Helena e Bastos. Notou a tristeza de Domitila. Não, ninguém é perfeito. Será que teria o mínimo de chance de reconquistar Maria Regina? Ela, ao menos, não era escandalosa como Ercília. Claro, tinha o lance do Raul, mas... quem na vida não errou? Estaria disposto a perdoar, mas sequer imaginava que a Maria Regina, tão bonita aos quarenta anos, o achava um panaca ridículo e não se conformava em ter se casado com ele.

Esse DJ era mesmo mágico. Parecia que adivinhava. Colocou para tocar "Blue Eyes", de Elton John, a música que Cunha sempre usava quando queria amolecer o coração de Regina. Decidido, ele largou Ercília no meio do salão e dirigiu-se com passo firme em direção da ex-mulher. No meio do caminho teve o braço puxado pela mão de Dona Gertrudes, que estava sozinha numa mesa:

- Senta aqui, Cunha. Converse um pouco com esta pobre velha...

Cunha sentou-se, um pouco contrariado, enquanto seus olhos continuavam seguindo Regina pelo salão.

* * *

Maria Helena pediu mais uma meia-de-seda para o garçom com um aceno. Estava sentindo uma tontura gostosa e queria manter-se assim. Bastos agora conversava com tio Nestor e com o tal Alfredo em uma mesa próxima. "Tonto. Cretino. Um dia eu vou tomar coragem e aí você vai sentir, ah, se vai!". Esticou um pouco o pescoço e viu Regina entretida com um sujeito desconhecido. "Deve ser amigo do Alfredo, olha a pinta de cafajeste. Será que ninguém ensinou esse tipo a abotoar camisa? Sim, porque essa é a única explicação para esse peito de fora. Peito largo, aliás. Peludo...". Talvez fosse a meia-de-seda, depois de tanto pró-seco, talvez fosse apenas a inveja latente, mas Helena começou a sentir arrepios ao imaginar como seria tocar um homem que não fosse seu marido. "Acho melhor ir ao banheiro, lavar o rosto".

Ela levantou-se e sentiu o mundo girar. "Acho que echaxerei". Meio cambaleante, seguiu para os fundos do restaurante. Quando entrou no pequeno corredor que dava acesso aos banheiros trombou com alguém e quase caiu. Foi rapidamente amparada por duas mãos grandes e quentes. Apertou um pouco os olhos e reconheceu Raul.

- Helena! Cuidado, está tudo bem com você?

Sem atinar com o que fazia, Maria Helena enlaçou o pescoço de Raul e grudou os lábios na orelha dele:

- Rauuuuul, que pracerrrrr... puuxxa fida, como focê tá zeirosso. Vem aqui, eu quero dessscobrir que berfume é essssssse... - ato contínuo, pegou o primo pela mão e levou-o para dentro do banheiro feminino.

* * *

Bastos, que já conhecia perfeitamente o estado em que Maria Helena ficava quando se excedia no álcool, acompanhava-a com o olhar, enquanto ouvia a conversa cansativa do tio Nestor. Ver sua mulher agarrada ao pescoço do Raul fê-lo sorrir disfarçadamente. Porém, ver que ela estava puxando o homem para o banheiro feminino fez com que ele desse um salto da cadeira e gritasse por Aline:

- Filha! Corre aqui... sua mãe... no banheiro... corre! Me ajuda!

E ambos dispararam no meio da pista. Bastos nem percebeu que ao esbarrar num dos garçons fez com que sua bandeja voasse longe. Copos com os mais variados coquetéis espatifaram-se no salão, deixando a pista ao seu redor intrafegável.

* * *

O triste mesmo era ver a revolta de Regina que já não sabia se neste momento odiava a irmã e o cunhado que estragavam a sua brilhante festa ou se chorava ao ver o seu exuberante vestido claro manchado pelo Campari que escorria a partir do seu decote extravagante. Não escondeu nem a lágrima que derretia sua maquiagem, nem as faíscas fulminantes que seus olhos lançavam ao cunhado.

Só após alguns segundos é que percebeu o que realmente se passava ao seu redor. Laerte e Alfredo que se aproximaram rapidamente após o acidente, tentavam afastar o Cunha, que havia largado correndo a velha Gertrudes com suas histórias sobre o "velho Arnaldo" e que agora insistia em querer limpar, com seu lenço, o colo de Regina.

Por sua vez, Ercília, abraçando a cintura de Cunha, puxava-o enciumada, insistindo que não tinha acontecido nada demais.

Maria Regina surpreendeu-se com a delicadeza do ex-marido, passando o lenço em seu colo molhado de Campari. Ele, que até há bem pouco, passava a língua em suas gotas de suor. A língua do Cunha... A grosseria de Ercília interrompeu seu devaneio, arrastando Cunha e seu olhar de promessas. Maria Regina ansiava: passado, presente e futuro. Convidou Laerte pra dançar. A música mexia com ela: The shadow of your smile. Lenta. Um convite à umidade do corpo que redespertava: Cunha, Raul e o próximo. Cada qual à sua moda, com seus macetes e quereres. Ela os queria, todos. Apertou entre as suas a perna de Laerte. Deixou-se apertar. Quase deu uma lambida naquele pescoço cheiroso, quando ouviu a voz exaltada:

- Romário!

As mulheres se afastaram, formando outra roda. Conversa sobre futebol era um saco. Especialmente quando Cássio ficava de fogo. Nestor, Alfredo, Bastos, até o Cunha, deram início ao papo-careca: Romário deveria ou não ser convocado? Laerte não resistiu. Isso era assunto pra macho! E, soltando a perna de Regina, veio participar da principal preocupação da Pátria.

Em meio ao enorme vazio à sua volta, Regina notou que Ercília e Domitila sorriam o sorriso das infelizes-com-homem. Quis que o mundo se abrisse aos seus pés. Quisera não ter nascido. Mas fez o que qualquer mulher faria nessa ocasião. Andou em direção às duas e mentiu - Que pé de mesa! O ódio minguou os sorrisos de luas crescentes.

* * *

Dona Gertrudes saiu do banheiro amparando Maria Helena que, rosto lavado, sem maquiagem, chamou Maria Regina e disse, com voz sincera:

- Desculllpe se extraguei sua festa, shabe, maisshi o Baishtos... e o Raul tava ali messsmo...

Os olhos de Maria Regina se encheram de lágrimas. Apesar de todos esses homens, ou talvez por causa deles, elas deveriam estar sempre unidas. Chamou a irmã para um canto e disse:

- Preciso desabafar. Quer saber do que o Raul gosta?

Maria Helena entortou o pescoço para ouvir a irmã, já que o DJ, sacando a confusão, mandou um "It´s Raining Man, Aleluia!" no último volume.

- O Raul gosta de fio terra! - confessou Regina, e recebeu em troca um olhar arregalado, que quase curou a bebedeira da irmã.

- Quiquié isssso Rê, fio terra?

- Pois é, depois do sumiço no carnaval, o Raul começou a fazer coisas estranhas quando eu reclamei que ele estava muito frio na cama, disse que nunca teve coragem de pedir para alguém antes, e eu também, até então, só tinha lido isso em revista...

- Falalogo, mulher, que raio de fio terra é esshe, oras...

- Calma! - pediu Regina, enquanto conferia se não havia ninguém por perto. Não avistou o Raul e pediu duas cuba-libres para o garçom.

- Ele gosta que coloque o dedo lá atrás, no fiofó. Enrubesceu a face além do rouge imitação de bronzeado. - Não sei o que me deu em te falar isso agora, mas quando vi você agarrada no pescoço dele foi a primeira coisa que me veio à cabeça, e afinal, você é minha irmã, para quem mais eu contaria uma coisa dessas...

As duas caíram às gargalhadas, e brindaram as cubas. Maria Helena já havia até se esquecido da raiva do início da festa, talvez fosse efeito do álcool, mas queria agora participar da felicidade da irmã, já que outra festa dessas, só nos 50, e olhe lá...

Saíram tropeçando no meio da pista assim que ouviram "Abra suas asas, Solte suas feras", das Frenéticas. Arrastaram as filhas, Dona Gertrudes e de repente, todas as gerações de mulheres da família Serafim dançavam ao mesmo passo. O globo começou a girar e espalhar luzinhas espelhos por toda parte.

A garçonete se preparava para trazer o bolo de aniversário, brigando com a caixa de fósforos ao tentar ascender as quarenta velinhas faisqueiras, dessas que parecem mini fogos de artifício.

Raul saía do banheiro e os homens, que antes falavam Romários, passaram a observar a bagunça na pista. O Cunha, analisando a cena, comentou olhando as mulheres de costas, fazendo uma coreografia ridícula:

- Vocês já repararam que as bundas delas são iguais? Variando um pouco o tamanho, todas tem o mesmo formato...

Elas dançaram até o fim da música, rindo e soltando gritinhos finos a cada minuto. Quando o último "como e-eu e como vocêêêêêê...!" soou, Regina saiu da pista com todas as mulheres de sua vida atrás dela, parecendo formar um séquito imperial.

Agora Regina era o foco de todas as linhas de ação dos convidados. Sobre a mesinha, os crisântemos falsificados de Maria Helena murchavam sob a força dos sentimentos conflitantes.

- É o papel de seda roxo, que queima as plantas - arriscou Ercília, repreendendo simbolicamente o Cunha, enquanto fazia-o perder o equilíbrio com um chute bem aplicado na junta da perna esquerda. "Melhor inválido que ausente".

* * *

Uma pequena confusão começava a se armar na rodinha masculina. Era verdade que Laerte era um gladiador, mas Alfredo detinha uma agilidade e elegância que ganhara nas aulas de balé, somadas às habilidades de artes marciais, aprendidas nas incansáveis sessões de filmes do Jackie Chan. A estranha coreografia de dedos nos olhos, e socos curtos seria melhor ilustrada por uma versão colorida dos filmes do Gordo e o Magro. Enquanto Alfredo e Laerte continuavam na caricatura de uma luta, e Ercília arrastava a bola de dor que era o Cunha para o banheiro feminino, visando seviciá-lo.

- Faz bem para o joelho - inventou ela.

Raul foi atirado ao chão por um gesto mais brusco da horrenda coreografia. Arrastando-se como podia, tentava alcançar o celular para ligar para a polícia. Teve a mão pisada impiedosamente pelo afiado salto de Dona Gertrudes.

- Será que este idiota não conhece as festas dos Serafins? - perguntou o Nestor, que pisava no celular, fazendo-o estalar como uma barata.

* * *

Regina sorriu carinhosamente para Helena.

- Obrigada por tudo, irmã comportada - murmurou ela, acariciando a maquilagem desfeita - Você foi sempre tão boa com todos. Vamos para a janela, enquanto as velas não acendem.

Aquele sopro de reconhecimento, inédito entre os Serafins, restituiu mais um pouco da sobriedade de Helena.

Alheias a tudo, as duas irmãs estavam na janela, esperando que o ar da noite as refrescasse.

- Voxê... xempre foi tão bonita - Helena pensou em falar dos cravos, mas não havia clima para ironias, só para confissões - e todos oshi diash eu envelexo.

Regina sorriu novamente, e seus olhos azuis se voltaram para a lua.

- A lua é bonita.

- Ela não dem uma ruga xequer.

- Olhe bem, Helena. Ela tem muitas crateras, manchas de toda ordem, mas ela guarda o segredo da beleza.

- Voxê xabe, não é? - Helena percebeu que as rugas existiam mas eram inócuas no rosto da irmã - Qual é o xeu xegredo, Rê?

Os lábios de Regina encostaram no ouvido de Helena para contar o segredo, não que alguém pudesse escutá-las, no pandemônio da festa, mas para que nenhuma sílaba vazasse:

- É a luz.

Respirou profundamente e concluiu:

- A luz que sou, ofusca o tempo.