A
LOUCURA DO REI
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Tania
Crivellenti
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Metade
desta história é ficção, a outra metade não. Ele acordou sentindo-se Rei, afinal, era o Rei, no seu lugar era Monarca, não havia nenhuma dúvida. E foi para o seu palácio. Sentia-se muito bem, até que seu tormento chegou. Seu calvário pessoal vinha na pele de uma mulher, como todos os reis da história, mas seu sofrimento era ao contrário, era sofrimento de poder, e poder puro e simples, sem romance nenhum, embora, cada vez que olhasse para Aquela, sentisse acender em seu reinado uma chama de amor e ódio. Era o desafio nos olhos dela que o enlouqueciam, e a doçura e humildade de sua voz que o irritavam a ponto de ruptura. Quanto mais ele tentava quebrá-la, mais via em sua linguagem não-falada que todo o poder, que ele achava que tinha, batia numa concha impermeável. Primeiro o Rei a transferiu para um outro lugar de trabalho. Ela foi separada de suas amigas e colegas de trabalho para ser jogada em um meio, até então, puramente masculino. Os homens ao redor dela se ressentiram de sua delicadeza, de sua posição, de seu trabalho, o Rei tinha certeza de que a intimidariam. Foi com espanto que ele observou que ela os comprou com bolachas. Todos os dias trazia quitutes diferentes para agradar seus vizinhos de labuta. E, biscoito a biscoito, gentileza a gentileza, de favor em favor, ganhou todos, cada um deles. E o que era para se tornar um tormento, virou em favor da mulher. Ela passou a ser um olho em terra de cegos, uma rainha por sua vez. O Rei queria estrangula-la. A presença de tanto poder, roubava dele o brilho e a cor que lhe deveriam ser absolutamente (que vem de Absoluto, que era o que ele era) seus. Somente seus. Então ele lhe infernizava a vida. Ao que ela sempre respondia: - Sim, Majestade. - Claro, Majestade. Quando a repreendia e ameaçava ela dizia: - Perdoe-me Majestade, o Senhor tem toda razão, por favor, sou muito limitada, apenas nomeie a punição que a cumprirei. - Sem dúvida o senhor está certo. Faça o que achar necessário fazer comigo. Ele tinha ganas de executá-la, pois a cada palavra seus olhos se estreitavam um pouco, e ele tinha certeza de ouvir seus pensamentos sórdidos: - Você é um idiota, Majestade. - Jamais saberá nada, Majestade. - Nunca terá razão nenhuma, Majestade. - O Senhor não tem inteligência suficiente sequer para entender o que estou fazendo! Mas, como poderia executa-la sem riscos ao seu reinado? Arbitrariedade era amplamente permitido aos monarcas, mas loucura não. E o fato de tantas vezes haver concentrado sua atenção nela poderia trazer-lhe problemas. Um caso de amantes seria aceito, mas todos sabiam que ele a odiava, e que ela nunca se aproximara, ou aproximaria, dele. Então ele notou que uma coisa que parecia uma estranha fonte do poder dela, era o "reservado". As leis da civilização, mesmo num reinado como o seu, separava os toaletes de homens e mulheres. E, como o Rei a colocara sozinha em meio ao outro gênero, acabara sendo obrigado a destinar-lhe um "reservado" só dela. E, mesmo obtuso como ela parecia achar que ele era, o Rei foi capaz de observar que todas as vezes que ela deixava o tal recinto, parecia renovada, cheia de energia e rebeldia. O Rei admitia, aquela era sua Loucura particular, com seu jeito de conter cada movimento, pensar cada palavra dirigida, segurar cada impulso... A cada dia o "reservado" mais lhe atingia, mais o intrigava, mais o consumia. Pois, a cada momento, mais ela vicejava. Ela era a antítese de Seu poder onipresente e onipotente, aquilo que ele não conseguia romper, e se ele a rompesse com o punho, não obteria nada. Ele se tornaria o louco e agressor, ela a mártir e injustiçada. E se fosse chamado de louco, poderia ser destituído, não de ser Rei, não havia no mundo quem pudesse fazer isso, mas poderiam colocar alguém para reinar e deixar para ele tudo que fosse irrelevante; e ainda, se ele se rebelasse, poderia criar uma rebelião do povo ... e morrer pelas mãos dela! Que pensamento tenebroso! Muitos já lhe haviam afirmado: que sorte a sua tê-la em seu reino! Todos estes já se encontravam longe e desgraçados, mesmo sem saber que o motivo era esta frase. A primeira idéia que teve foi mudar novamente o local de trabalho dela. Assim ela voltaria a dividir o toalete com as colegas. Mas muitos já o haviam questionado sobre tanta fixação com a mulherzinha. E a linha entre arbitrariedade e loucura era muito, muito tênue. Então decidiu, a despeito de qualquer conseqüência, descobrir o que ela fazia em naqueles momentos em que ficava sozinha. E eram tão curtos! Menos de um quarto de hora! Ele encomendou um objeto mágico, com um mago de um reino vizinho, sem se identificar como Rei. Empreendeu longa viagem para tal. Era uma pequena fortuna, mas ele era um Monarca, de um pequeno reino, mas Monarca, e podia se dar ao luxo. Quando a encomenda chegou, ele maravilhou-se como o pequeníssimo globo. Bastava coloca-lo no "reservado" da mulher e observaria tudo lá dentro, através de um outro globo bem maior, escondido em seus aposentos reais. Não poderia observar "a casinha", mas também, nem era esse seu interesse. Ela sempre usava saias soltas, e por isso ele jamais deduzira o que estava por acontecer. O Rei resolveu humilha-la de maneira particularmente mais cruel aquele dia, só para observar o que ela faria. Como previsto ela saiu da companhia dele para ir direto ao seu "reservado" e foi com espanto que ele observou-a entrar, e ainda andando para dentro, ir tirando sua roupa íntima! Ele demorou um pouco a registrar a informação, ela levantou apenas um lado das saias, e desceu o braço trazendo um dos joelhos para cima, repetiu a operação com o outro joelho muito rapidamente, guardou a pequena peça de tecido na bolsa e saiu por aí, com suas saias esvoaçantes, e um sorriso enigmático no rosto. ERA ISSO! A roupa íntima, de nome diminutivo, estava na bolsa, e portanto ela estava sem! Ele entendeu a liberdade que ela sentia, como ela tinha um segredo que ninguém imaginava, como em sua mente ela sabia que ninguém poderia prender todo o seu ser. Foi inevitável a fascinação do Rei, e ainda maior o seu tormento, imagina-la nua por baixo das saias lhe dava uma sensação inominável. E a cada dia que Ele via isso acontecer ele não a chamava mais, não suportaria tê-la por perto. Sempre a maltratava pela manhã, e somente enquanto tivesse certeza de que estava "totalmente" vestida. Tornou-se ainda mais insuportável. E ela "diversificou" sua rebeldia. Ele não podia puni-la diretamente por isso, uma vez que o "reservado" feminino era tão sagrado quanto uma igreja e um cemitério, e ele não podia admitir tamanha invasão, e não havia nenhuma outra maneira de saber o que se passava. Algumas vezes ele enviou uma espiã, apenas alegando que a Mulher-Suplício fazia algo estranho. Só que ela era esperta e não foi pega. Entrava e trancava a porta. Se não estivesse sozinha, não fazia nada de anormal. Sempre examinava todos os cantos antes de se lançar aos seus delírios. O Rei mais uma vez observou embasbacado quando a mulher passou, não somente a retirar as roupas íntimas, como retira-las todas. Ficava nua no toalete, andava um pouco para cá e para lá, subia nos objetos frágeis de louça, lia um livro. Tudo em menos de cinco minutos, então vestia "quase" toda a roupa e lá ia trabalhar humildemente como se estivesse tudo normal. Mas a gota d'água veio com a música, e pior, com a Dança. Quando ela desembrulhou o pequeno pacote, colocou para tocar bem baixinho e se lançou em amplos movimentos, amplos demais para espaço tão pequeno. Braços e pernas para todo lado. E o Rei vendo aquilo sentiu formigar seus braços e pernas, podia sentir seu rosto de aquecendo de vermelho, nunca sentira tanta, tanta raiva antes. Ela se apoiava nas paredes. E Ele tentava respirar, mal prestando atenção na dor, enquanto ficava colado olhando o maior espetáculo de disparate jamais visto. Ela rolava no chão. Ele sentiu uma pontada aguda no meio da ponta do dedo mindinho da mão esquerda. Ela arquejou o corpo. E o Rei achou que estivesse se apoiando com força demais nos braços, pois eles formigavam como nunca, e doíam de tanto formigar. E ela se levantou do chão, aliviada, rindo, triunfante. E o Rei caiu. E morreu. |