O REI
Lydia Dias

Acordou bem feliz. O café da manhã o esperava farto na mesa. Bebeu o leite de um só gole e limpou a boca na manga da blusa satisfeito. Comeu tantos pãezinhos quanto pode, beijou a empregada e saiu correndo em direção à porta passando rapidamente por baixo do braço da mãe que quase derrubou os livros, a bolsa e a mochila que carregava.

O dia custou a passar. Eram muitas as atividades mas o menino era rápido em todas elas. Exceto por alguns momentos de plena concentração, ele parecia escorregar pelas aulas sem grande interesse. Balançava o pé sob a cadeira, ria muito, interferia nas explicações dos professores e era raro quando aceitava que alguém o repreendesse. Mas a mente brilhante do garoto surpreendia a todos causando espanto em alguns e encanto em outros. Ele certamente era uma versão bem moderna de menino levado. Era doce e carinhoso, apesar de falar e exigir demais. Contudo, com jeito tudo se resolvia. Bastava que alguém mais esclarecido se dispusesse a sentar com ele e explicar-lhe as coisas com paciência e vagar e ele se envolvia em uma disputa de argumentações, até que se dava por contente frente às exceções abertas diante de sua retórica bem desenvolvida e prometia ser mais cauteloso no decorrer daquele dia.

Voltava para casa já bem tarde sempre reclamando dos desmandos do homem do ônibus escolar que ralhava com ele todos os dias. À noite confidenciava seus pensamentos e sentimentos à mãe, que pacientemente o ouvia e explicava o porquê das coisas serem do jeito que eram - e só depois de tudo bem esmiuçado e explicado ele conseguia fazer seus deveres e jantar com tranqüilidade. O pai chegava mais tarde. O telefone logo começava a tocar e muitas vezes a noite se prolongava em importantes discussões sobre os rumos da política no país . O menino ouvia atento as visitas se inflamarem em discursos e risos. Sinceramente, ele não gostava muito daquelas reuniões que lhe roubavam a atenção dos pais, mas quando ouvia o quão importantes elas eram, e que ele estava tendo a oportunidade de ver e conhecer os bastidores do processo político de seu país... ele se aquietava fingindo-se entretido e de vez em quando cutucava um dos convidados e lhe falava alguma coisa importante. Era bem tarde quando ia dormir - a cabeça cheia de idéias e fantasias de como devia ter sido valiosa a experiência de ter tomado parte naquele tal de processo decisivo para seu país.

No dia seguinte, sentia-se anestesiado quando ouvia um colega contar sobre a visita de um tio, ou de como os pais do outro o faziam ir dormir cedo... Ele? Ah... ele tinha participado de um algo muito maior. Os meninos o olhavam com inveja... Nossa, como seria bom ir pra cama tão tarde e participar das conversas dos adultos ...

Nas férias seu melhor amigo o convidou para a cerimônia de primeira comunhão, mas como Deus não existia mesmo, ele preferiu ir visitar a fazenda de um familiar em outro país. No condomínio, não gostava do jeito que os outros meninos brincavam e com o tempo a escola passou a se tornar um purgante. Não suportava as imposições dos professores, as brincadeiras ridículas da turma e ria alto quando a professora feia e barriguda o mandava para fora da sala de aula. Na sala da orientadora era recebido com austeridade, mas o tom suave da profissional o acalmava. Agora poderia conversar com alguém que o compreendesse. Conversavam por horas e depois de um café, ele parecia mais calmo e pronto para voltar às aulas com nova energia. Os colegas o recebiam como herói com indagações e tapinhas nas costas.

Nas provas, tirava as melhores notas. Estudar? Nem precisava. Seu português impecável, as correções que fazia quando seus colegas cometiam erros, o conteúdo de suas observações nas aulas de história e a sua memória fora do comum eram motivo de elogios e comentários dentro e fora da escola. Ele contudo, sentia-se só. Nada fazia acalmar a angústia crescente que o aturdia . Não havia quem o pudesse acompanhar em suas ações salvo o eterno vazio que o escoltava noite e dia...

Em casa, dedicava-se aos jogos de vídeo game. ... Vencia todos os oponentes e só sossegava quando quebrava recordes... Um após outro, jogava até a exaustão. Seus olhos vidrados seguiam os movimentos rápidos na tela, os dedos ágeis não paravam nos botões, a mente seduzida pela loucura. Vencia o pai, a mãe, os tios, os colegas, a máquina. Enfim, não havia páreo para ele. Devorava os jogos, os chocolates e engolia os amigos..

Quando os colegas da escola foram em bando para o Guarujá, ele foi visitar a China. Quando foram para a Disney, ele foi para a Europa. Quando contaram-lhe tudo o que haviam aprontado e o tanto que haviam se divertido nos parques, ele informou-lhes sobre a depressão que sentiu nas catacumbas.

Com o tempo ele passou a devorar também revistas de mulheres nuas... Ele as desejava todas... infelizmente nem as meninas mais velhas o olhavam. Desta feita ele possuía as mulheres que podia comprar... Mas incomodava-se com aquele corpo magricela e temia nunca poder competir com os demais garotos. Esse era seu ponto fraco, pensava ele: era extremamente inteligente, tinha um belo rosto - certa vez tivera uma série de fotos publicitárias suas publicadas num jornal - mas um corpo magro demais. Um dia anunciou à família que iria dedicar-se a algum esporte. Seria um meio de ver o garoto gastando a energia extra que tinha em algo positivo... pensaram os pais. Sua dedicação e seriedade animaram a todos. Acordava de madrugada, pegava o táxi que o esperava diariamente em frente ao portão de casa, ia para o clube e treinava até a exaustão. De lá seguia para a escola, empurrava-se pela manhã, agüentava silencioso a zombaria dos colegas encorpados, chicoteava outros com sua ironia ardida, driblava regras, era aplaudido pelos alunos quando fazia calar um professor com suas correções impertinentes. Devorava a mesa do almoço. Engolia o travesseiro em seu sono pesado, saía novamente para o clube e comovia seu treinador com tanta disciplina. Sorvia o ar, engolia o mundo na piscina. Os músculos em seu corpo foram se desenvolvendo. Treinou com determinação, com obsessão, quase que com ódio. Venceu competições, campeonatos, ganhou títulos... Os colegas o aplaudiam, os pais orgulhosos toleravam seu mau humor, os pais dos amigos usavam sua seriedade e determinação nos esportes como exemplo de sucesso garantido no futuro, as meninas o desejavam - umas por seu porte físico, outras por sua inteligência. Ele finalmente sentia o que sempre suspeitara: ele era um Rei.

Com o tempo sentiu que o desafio não mais existia. Se assim o desejasse, bateria qualquer adversário. Tinha o melhor tempo, o melhor clube, o melhor treinador, a alimentação mais adequada e balanceada. Estudava na melhor escola, as meninas mais bonitas o queriam, tinha as melhores roupas, conhecia o mundo lá fora, as comidas mais diferenciadas... Tinha tudo. Mas TUDO não mais bastava. PRE-CI-SA-VA (como ele mesmo dizia) de mais... Explodiu os músculos do corpo com vitaminas e aminoácidos e tornou-se um jovem enorme. Havia-se cansado dos jogos de vídeo game do mesmo modo como havia se cansado dos professores que podiam ser tão facilmente derrotados, dos diretores que se permitiam humilhar... Havia-se cansado de ser tão engraçado, um atleta tão aplicado, tão bom aluno sem ter que fazer esforço algum... As visitas ao shopping tornavam-se cada vez mais freqüentes... comprar, comprar, comprar. PRE-CI-SA-VA de algo mais... Queria um outro tipo de jogo... entrava em êxtase malhando na academia horas e mais horas por dia... Perguntavam-lhe se estava usando drogas, mas ele sorria com desdém... Não... Eu sou grande mesmo. E quanto mais treinava, mais músculos ele queria... Partiu, enfim para as bombas e transformou-se em um gigante de pescoço largo... Malhava mais e crescia... Negava o uso de quaisquer drogas... E como as pessoas não insistiam muito nas perguntas ele julgava amedrontá-las. Ninguém o conhecia de fato, ninguém sabia o que de fato ocorria dentro dele...Tornara-se um cínico e enchia-se de prazer com a nova sensação de poder... Não podia ser atingido... Não podia ser magoado, não podia ser atacado, julgado ou corrigido... Quando e sempre que desejasse... afrontaria, assustaria, calaria e humilharia...Teria as pessoas lá , aos seus pés... a pessoa doce ou a megera, a submissa ou a ditadora, a pessoa mais segura ou temida ... De uma forma ou de outra sempre as teria lá... sorrindo para ele... definitivamente : ele era Rei.

Tinha certeza de que teria sucesso em qualquer atividade que resolvesse exercer. Entrou em algumas faculdades, mas nenhuma o apeteceu. Destruiu todos os carros que pode, gastou muito dinheiro, cheirou noites, queimou amizades. Um dia aprendeu a lutar. Foi trabalhar como segurança em uma boate e sentia enorme prazer ao ver sangrar os baderneiros das festas. O que não era a vida, senão uma grande rinha para divertir os mais espertos? Incitava brigas, mentia, contava vantagem. Sentia que sempre se dava bem. Saía com as mulheres mais bonitas, exibia-se em roupas e dinheiro e trocou o dia pela noite... De quando em quando, a depressão o levava de volta à casa onde uma conversa sensata com a família o fazia se desculpar e prometer mudanças sérias para os próximos dias... Por algum tempo sentia-se confortável, mas logo sua ética e moral próprias falavam mais alto e ele entrava em confronto com aquele ser que habitava suas entranhas... e partia novamente noite a dentro em busca da verdadeira razão da vida.

Uma madrugada, depois de saciar seus desejos com uma virgem , ele sentiu-se estranhamente enfraquecido. Ergueu-se da cama, lavou-se e saiu pelas ruas à pé. Desta vez, sem a ojeriza dos pobres que ocupavam a cidade. Perambulou por bairros inteiros, comeu um sanduíche num bar e sentou-se na calçada. Fixou seu olhar na propaganda que piscava em neon roxo e assim ficou , catatônico, horas a fio. Fechou os olhos e sentiu a chuva caindo fina, molhando seu corpanzil inchado. Ouviu então, o chamado. A voz vinha de longe. Doce, mas forte. Profunda e intensa. Abriu os olhos e seguiu a luz azulada... a estrada perfumada o conduzia sem esforço. Ele flutuava, levitava... A voz sussurrando-lhe instruções ao ouvido. Voltou para a pequena jovem que ainda dormia e sussurrou-lhe palavras doces ao ouvido. Aconchegou-a em seus braços enormes e jurou-lhe amor eterno. Sentou-se para sempre em seu trono cravado de pedras. Olhar perdido no tempo, para sempre fiel à sua pequena esposa, passou a dedicar seus dias à meditação. Fazia jejum às terças-feiras, promovia encontros de jovens aos sábados, palestras com oradores da Índia e China. Organizava peregrinações pelo Tibete, destinava parte de sua mesada à uma instituição de recuperação de jovens usuários de drogas e aos domingos, depois de um cerimonial misterioso, bebia o sangue de jovens gladiadores sacrificados em rituais satânicos dedicados ao Grande Rei.

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