O CIRCUNFLEXO DE PARMÊNIDES
Luís Valise

 
 

Deu-se que o Rei, cansado de guerras e conquistas, mandara construir a mais magnífica biblioteca até então existente, surgindo daí um grande edifício de pedra, todo ele dedicado à sabedoria: - a Biblioteca Doce Samira, homenagem ao seu novo amor, uma concubininha de 17 anos e muita criatividade. Imensa em meio às primitivas construções de adobe, era constituída por grandes salões com paredes recobertas de alto a baixo por enormes prateleiras forradas por centenas de milhares de livros, que versavam sobre todos os assuntos, inclusive aquele que revelava os segredos da fabricação do ouro, e que, trancado a sete chaves, nem era o mais importante para o Rei, que em sua infinita erudição apreciava especialmente os clássicos gregos.

Durante o ato de inauguração da Biblioteca, o Rei, braço dado à Samira, era seguido por um cortejo de amantes em vestes diáfanas, sacerdotes curvados sob pesados mantos drapejados de ouro, generais armadurados em aço, uma chusma de sacripantas de grande quilate. Atento a tudo ao redor, Trianon velava pela segurança do Soberano, que caminhava lentamente, os olhos agudos percorrendo as estantes abarrotadas. Vez ou outra detinha-se e acariciava com os dedos os fios de ouro que adornavam as lombadas recobertas de couro macio. Demorou-se defronte a um exemplar mais taludo. Tomou-o em suas mãos, abriu uma página ao acaso, e principiou a leitura em voz alta de um verso da Ilíada, de Homero. Aproveitando o momento de enlevo, Samira ajoelhou-se à sua frente e, abrindo as abas da imperial capa adamascada, abocanhou o pingolim Real. Imediatamente todos abaixaram a cabeça e viraram o rosto, menos Trianon, que através das pálpebras semicerradas vigiava a turba enquanto via Sua Alteza revirar os olhos. Samira pensava em Trianon.

No final daquela tarde, terminada a inauguração triunfal, o Rei anunciou que a festa teria início. Javalis, faisões, gazelas, marrecos. Tâmaras, uvas, figos. Ninfas seminuas traziam cornucópias de mármore de onde escorria arak, vinho, cerveja, licores. Uma esbórnia. Comia-se de tudo e de todos.

Um longo arroto aconselhou o Rei, e este julgou chegada a hora de recolher-se aos reais aposentos. O séquito de amantes fez menção de acompanha-lo, o que ele impediu com um gesto de mão, ordenando que apenas Samira o esperasse no leito. A excitação do dia fora demasiada, e antes de deitar-se Sua Alteza quis mais uma vez contemplar a obra formidanda. Sempre seguido por Trianon, galgou a escadaria da mais alta das torres. Lá de cima, sob a abóbada de um minarete recoberto de marfim, podia contemplar ao longe a Biblioteca em todo seu esplendor, prateada pela luz da lua, não bastasse o fogo do pensamento que iridescia em seu interior. Sentindo-se Senhor de toda a sabedoria acumulada, próximo da imortalidade, notou que seus olhos se umedeciam, e afastou-se de costas em direção à escada, para que Trianon não notasse a lágrima incipiente.

O pé perdido no ar buscou apoio no degrau. Em vão. O real corpanzil despencou escada abaixo, num tombo espiralado, sem pontos de apoio, até que o corpo parasse, inerte, em posição improvável. O guarda-costas acorreu junto à massa desconjuntada e verificou que o coração ainda batia. Da boca anciã saía um "ssssssss" de salve-me, que foi interpretado por Trianon como "sssssss" de Samira. Julgando-se descoberto, tapou com as mãos o nariz e a boca de Sua Magnificência, que arregalou os olhos, estrebuchou, e sentiu sua vida esvair-se num peido abafado.

Multidões vieram de todas as partes dar o último adeus ao Monarca. Após dois dias de exéquias, exposto ao sol, o corpo começou a apresentar grande inchaço ventral, e os religiosos resolveram encerrar o funeral. O grande sarcófago dourado foi carregado no lombo do maior dos elefantes. Apenas Samira e Trianon puderam entrar na câmara secreta da pirâmide que serviria de tumba para Sua Sapiência. Os escravos que carregaram o ataúde foram sumariamente eliminados, para que nada dissessem sobre o segredo do labirinto, nem sobre o livro tirado do esquife. A entrada do aposento foi lacrada com pedra e cimento. A escuridão e o silêncio eram totais. O sinal que os vermes esperavam para iniciar o régio repasto.

 
 

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