MEU VIZINHO
FRANCÊS
Larissa Meo
Foi o seguinte. Voltando do supermercado
para casa avistei um outdoor imenso que mostrava em letras
garrafais a pista que eu esperava há anos. "Quer dar um
rumo para sua vida? Então procure madame Zenóbia". Eu me
lembrei na hora do padre Alfredo e do sermão inflamado de
domingo onde ele dizia que todos os caminhos levam a Ele. Como eu
sou a mais perdida das criaturas, quem sabe esse não seria um
sinal dos mais divinos para mim. "Preciso tirar esta
história a limpo", pensei. No outro dia fui com a Bel,
aquela minha vizinha meio zen, até a tal madame Zenóbia com
hora marcada e tudo o mais.
O lugar era comum, a clientela era comum e o preço acessível
demais para quem estava tentando se encontrar há mais de 30
anos. Já devia ter desconfiado a partir daí, mas relaxei e
tentei aproveitar o momento. Quando chegou a minha vez uma
assistente, muito comum, nos convidou para entrar. Gentilmente a
tal madame nos fez sentar para começar sua encenação comum.
Foi AUM pra cá, OUM pra lá até que ela disse que captou uma
vibração extremamente positiva em mim. Isto significava que eu
era uma pessoa de muita sorte, mas não estava sabendo aproveitar
este dom. Sabe que depois que a madame falou no elemento sorte eu
lembrei que quando era criança eu sempre conseguia completar os
álbuns de figurinhas primeiro que os meus amigos? Também
lembrei das promoções de refrigerante a biscoito e que sempre
levava algum prêmio.
Depois de ficar quase meia hora com o baralho nas mãos (veja
bem, começa com B) a madame finalmente me deixou tirar a
primeira carta. Era a rainha. Como toda rainha tem seu rei, daí
em diante a mulher interpretou que no meu caminho havia um. Mas
não era um rei qualquer. Ele era um monarca gentil e sedutor,
vindo de uma terra distante a procura da sua rainha. "Esta
carta aqui mostra que ele fez uma longa viagem para
encontrá-la", disse.
Fiquei um pouco frustrada porque a minha primeira real
oportunidade de ser rainha, sem aquelas roupas esquisitas em
feira de fruta, aconteceu depois dos 30 anos. Depois dos 30 a
mulher já virou abóbora e não quer saber de príncipe nem de
rei para salvá-la. Se ele for bonitão a gente dá até uma
chance, mas daí a sumir com o cara rumo a terra do nunca já é
coisa de Wendy. As mulheres acima de 30, vacinadas, donas do
próprio nariz e sexualmente ativas soletram o abecedário dos
pontos orgásticos de A a Z. Na mulher de 30 a bunda é mais
bunda, o peito é mais peito e Viagra neles. E sabe do que mais.
O tal Balzac odeia a mulher madura porque ele casou com uma
criança de 18. A única coisa que ele pode fazer com aquela
ninfeta é leva-la na Disney nas férias de junho e no Mcdonalds
aos domingos.
O papo me estressou. E eu pensando que ia encontrar o meu rumo,
nivelar o prumo, deixar a espinha ereta e o coração tranqüilo,
só me embaralhei mais no novelo da vida. Depois disso, achei
melhor parar com as previsões de madame Zenóbia e cortar minhas
relações com o mundo místico. Quando cheguei ao prédio nem me
lembrava mais da tal Zenóbia e porque fui parar naquele lugar
tão comum sem nada a dizer. Do jeito que veio foi.
E foi aí que o seu Juvenal, o porteiro, veio me avisar todo
sorridente que eu tinha um novo vizinho. Um francês, vindo lá
das bandas do país do Asterix, alugou o apartamento em frente ao
meu. A vizinhança comemorava porque finalmente alguém ilustre
iria imprimir glamour na área útil do condomínio ao disparar
voilás, bonjours, pardons, monsiers e eticeterras. O nome do
homem era Guillaume Armand Coq Roi e sua chegada foi tão
esperada quanto a final da Copa do Mundo entre Brasil e França.
O que ninguém podia adivinhar era que o tal Guillaume era na
verdade um anão do circo Soleil em turnê pela cidade e com duas
férias vencidas. A figurinha era simpática e tinha a oratória
de político engajado. Mas o que ninguém conhecia era o lado
tarado do anão. Logo no primeiro dia ele bateu na minha porta
pedindo um petit sucre. Para fazer a política da boa vizinha
emprestei a ele um pouco do açúcar. Foi depois daquele doce
empréstimo que a minha vida se transformou no inferno recheado
de Madeleines, Bavarois, Petit Gâteau e Vol-au-vent. O anão era
gourmet e preparava iguarias fantásticas com a descarada
intenção de me levar para a mesa. O Jardim das Delícias tinha
se instalado na frente da minha casa e era governado por um anão
de circo viciado em pó de cana-de-açúcar. Cansada da tortura
de aromas e cores que aquele projeto de cobra me obrigava a
passar decidi colocar um ponto final na história. Tomei coragem
e aceitei tomar um café com monsieur Guillaume.
A única coisa que ele não imaginava era o meu real interesse
naquele encontro. Levei no bolso da saia uma dose cavalar de
laxante. Entre uma cantada e outra e muitas guloseimas nos
separando eu pedi mais café. Quando ele se levantou pude
tranqüilamente despejar o laxante no café do Coq Roi.
E não deu outra. Meia hora depois o anão galã teve de
interromper o nosso afrodisíaco encontro porque não se sentia
bem. Toutes lês vérités né sont pás bonnes à dire, mas isso
é que dá nascer Petit Poule e se apresentar como Coq Roi.
Glossário básico para quem
não fala, não escreve e não entende absolutamente nada de
francês:
Bavoraise - Sobremesa enformada (e não informada, tá?)
Bonjour - Bom dia
Coq - Galo
Glamour - É glamor mesmo, tá
Gourmet - Aquele profissional responsável pelo pecado da gula
Madeleines - Proust celebrizou este bolo em forma de Vieira na
obra Em Busca do Tempo Perdido
Monsieur - Senhor
Pardon - perdão
Petit - Pequeno
Petit Gâteau - Bolo regado com calda. Delícia!
Petit Poule - Pintinho
Roi - Rei
Soleil - Sei lá, tem carro francês que tem esta marca
Sucre - Açúcar
Toutes lês vérités né sont pás bonnes à dire - Nem todas as
verdades são ditas
Voilá - Deve ser algo como "é isso aí"
Vol-au-vent - Vôo no vento, um doce com cara de bom
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.