SOL POSTO
Jorge Silva
O
rei encostou-se a uma árvore para descansar, ao entardecer de um
dia bastante agitado. Metros adiante, os infantes julgavam
brincar mas reinavam. Nenhum súbdito ousaria aproximar-se de
Suas Altezas naquele instante, interrompendo o encanto. O rei
apreciava muito os finais de tarde em família, ainda que o
preocupasse a crescente agressividade dos herdeiros potenciais,
cada vez mais crescidos, mais fortes. Mais próximos do dia em
que um de entre eles clamaria mais alto pelo ceptro do pai.
Mas ainda estava distante esse dia, como o desempenho real das
últimas semanas tão bem evidenciou. O soberano liderara com
mestria e coragem a resistência a um poderoso invasor, ostentava
na pele as marcas da peleja e no porte a certeza de que o trono
era seu e ninguém se atreveria a disputá-lo nos tempos mais
próximos. Um olhar de desagrado do rei fazia tremer os mais
valorosos, que lhe conheciam bem o mau humor. A força era o
critério que prevalecia e nenhum outro produzia resultados tão
compensadores.
O sol parecia agigantar-se em tons de laranja no ponto em que
tocava a linha do horizonte, exibia na despedida uma
manifestação do seu poder. Mas à noite ele partia do céu,
ausência forçada que ao poder terreno do rei nada conseguia
impor. Nem as próprias leis da natureza desafiavam a ira do
monarca, capaz de responder à altura ao fragor de um trovão.
Nunca deixava por responder.
A companheira, rainha, partilhava em silêncio o espectáculo de
cor, serena. Agradavam-lhe os escassos instantes despreocupados e
sem afazeres, os que se impunham como inevitáveis em função do
estatuto. Competiam-lhe porventura as mais importantes tarefas da
agenda real, mas arcava com a responsabilidade sem questionar a
ordem natural ditada pela tradição. Ele mandava, ela fazia. E
tudo corria pelo melhor dessa maneira ancestral.
Tudo parecia imutável no espaço, no tempo e na organização
social. Apenas se substituiam os protagonistas, mal surgiam em
cena os figurantes principais cuja presença nos bastidores
prenunciava o fim da dinastia. Ao menor sinal de fraqueza ou
hesitação, o testemunho do poder era arrancado à bruta do rei
debilitado e a coroa transferia-se para outra cabeça real.
Simples e essencial para evitar o vazio de poder, a mais perigosa
fragilidade de um regime sustentado pela força do seu ditador.
O rei conhecia os costumes, como os seus antecessores, e cuidava
de controlar com atenção os que identificava como potenciais
sucessores. Os infantes varões, quem mais temia à luz dessa
perspectiva, denotavam já a rebeldia e a pujança que o haviam
conduzido à liderança, anos atrás. Contudo, o velho cansado
que lhe cedera a posição e a vida num combate curto mas feroz
não era seu pai. O rei sabia que o derredeiro desafio poderia
surgir do nada, mesmo de entre a paisagem desfocada pelas ondas
de calor que o fascinava todos os dias, ao entardecer.
Pressentiu o pior, fracções de segundo antes de acontecer.
Ouviu o primeiro estampido, mas a morte já o ensurdecera quando
o segundo soou. Um atrás do outro, todos os membros da família
acompanharam a desdita do seu senhor.
No final da carnificina, jaziam na savana todas as expectativas e
ambições, todas as manias de uma grandeza efémera, volátil,
estoiradas como simples bolas de sabão pelo mosquete de um
atirador.
Quando a lua surgiu para prestar vassalagem de luz a Sua
Majestade, a selva dormia tranquila. Só a fogueira ateada pelo
novo tirano denunciava a mudança no regime. Poucos anos depois,
o último monarca da região partiria desterrado para um mundo
estranho, distante e hostil. Agrilhoado a um barrote no fundo
escuro e frio de um porão, outro rei sucumbiu. A caravela
acabara de zarpar quando o seu coração parou, dilacerado pelo
desgosto. Pouco antes, enquanto caminhava sobre a fina areia da
praia, acorrentado pelos invasores, percebeu que o seu mundo
acabara, pois a selva não celebrou com o rugido dos leões ou o
rufar trepidante dos tambores de alguma aldeia vizinha a glória
eterna e imensa de um ocaso africano.
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