O LUGAR DO REI
Ivan de Almeida
Sento-me à cabeceira. Durante muitos
anos tivemos em casa uma mesa de jantar oval - aliás, muito
incômoda, excessivamente alta e com cadeiras frágeis. A ponta
aguda da elipse não permitia que nela ficássemos confortáveis,
de forma que sentávamos na parte onde a curva era mais suave.
Assim, nenhum lugar se distinguia dos demais.
Depois, porém, compramos uma mesa maior, retangular, comprida, e
desde o primeiro dia de uso apossei-me da cabeceira, de onde,
simbolicamente, chefio a família, ainda que saiba não haver ali
nenhuma chefia de fato.
Há certa necessidade de simbolismo nas famílias e nas
comunidades. Não devemos querer erradicar toda a prática
simbólica de nossa existência, todos os papéis convencionais
que nos são atribuídos, pois não somos capazes de viver assim,
como balões soltos. Precisamos de referências que enfatizem os
lugares que ocupamos nos grupos humanos aos quais pertencemos. Em
relação às refeições, minha meta pessoal, confesso, é
reproduzir na mesa a casa do meu avô onde vivi por alguns anos
na infância. Não reproduzir exatamente cada coisa, não copiar,
mas ter algo daquele conforto cerimonial ali havido, que
transformava a alimentação em rito e em pausa e a fazia
centralizar as relações familiares.
Lembro-me que sentar àquela mesa, louça azul e branca com
pagodes chineses desenhados, descansos de guardanapos cuja
lateral parecia um coração de ponta-cabeça, argolas de
guardanapos grossas, pessoais para cada um, comida fresca e pouco
temperada como a apreciava a personalidade exata do meu avô,
resumia a segurança que, na infância, sentimos quanto à
família. Dia após dia sempre a mesma arrumação, os mesmo
talheres na mesma disposição invariável, a mesma jarra de
água gelada com sua superfície de metal suada onde desenhava
meu nome com o dedo e o via escorrer em gotas. Uma continuidade
agradável a sugerir um mundo no qual se podia confiar por tão
previsível. A sugerir sempre podermos contar com aquela mesa
calma e provida, com aquela comida sem temperos dramáticos ou
excessos, justa.
Anos passados e já adulto, comecei a viver independentemente.
Morei sozinho ou dividindo apartamento com amigos. Comíamos a
qualquer hora, retirando diretamente das panelas o alimento para
o prato, ou cozinhando-o improvisadamente e sem arte para
devorá-lo em seguida. Omeletes, ovo, ovo, ovo, salsichas, arroz
integral que a diarista deixava preparado duas vezes por semana e
que requentávamos nos dias seguintes, carne de soja, latas,
latas, presunto, e todo o tipo de coisa pronta. Nada havia de
solenidade nas refeições, sequer refeições propriamente
ditas, pois ocorriam sem horário nem definição precisa. Apenas
comíamos.
Mas agora as crianças precisam dessa segurança. Da que posso
realmente oferecer e daquela, bem maior, que ingenuamente
acreditam possível. Precisam de alguém à cabeceira de uma mesa
onde se celebre cotidianamente o rito da refeição familiar.
Precisam de uma constância que sugira estabilidade e calma, e
que dê aos seus espíritos infantis o tempo para devanear e para
percorrer calmamente essa infância que é tão longa na vida de
cada um, pois feita de tempo que desconhece fim ou urgência.
Então me sento à cabeceira qual um rei benfazejo, um pouco
severo, um pouco amoroso, e me delicio tanto com o papel
desempenhado que nele creio.
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