SONHOS DE UMA NOITE DE VERÃO
Helô Barros

Eu mereço esta vida de dar tratos a bola: gengiva, quarta-feira, alicate, Rei. E lá isto são coisas pra se falar com tanta guerra no mundo? Mas, como já falei anteriormente, todas as coisas são a mesma coisa e, o tema apenas serve como gancho pra trazer o estado de espírito do escritor. Mesmo que este escritor faça ficção, lorota, ou apenas se iluda frente a uma máquina de escrever. O que preciso contar é que o escritor tem o poder de argumentar e transformar a tristeza de uma partida na alegria de uma chegada, a dor que sente no joelho esquerdo descrevendo o ombro direito. Enfim, um assunto ou outro pouco importa.

Mas, sair de uma "quarta-feira" pra cair num "Rei" é demais. Nem que este Rei seja de além-mar, que esteja vestido de arminho e coroa, que seja reverenciado como um ídolo, um semi-deus. Estava esquecendo, poderia ser rei do pó, do rock, do futebol. O que me incomoda, já disse, é sair de uma quarta-feira e cair num império com Rei e tudo. Foi assim, com esta preocupação com o tema da semana, que fui dormir ontem a noite.

Como dizia, dormi preocupada com a data de entrega, com aquele compromisso de produzir. Precisava puxar um Rei da sacola como um coelho da cartola, um Rei a quem devemos reverência, o que representa o povo, as conquistas de impérios, o ídolo. Bom, como dizia, o travesseiro era fofo e cobria minhas orelhas, o cansaço grande, e o sono debruçou sobre os fios dos meus cabelos e falou para o silêncio:

- Você precisa ir até o Rei.

- Rei? Pra que eu preciso ver o Rei? - argumentei.

- Oras, falou o sono, pra ser admitida no reino.

Sabe como é, eu pra esta história de sonhos tenho o maior respeito. Sou capaz de ir dormir só pra resolver questões que as horas claras me apresentam. E lá estava, sem entender o porquê tinha de chegar até o Rei, e mais, esperando admissão neste reino. Pra quê? De qualquer maneira resolvi tirar o assunto a limpo porque estas vozes oníricas são malandras, capciosas.

- Como chego até lá? O que devo buscar? - perguntei.

- Precisa ir correndo através dos 30 mundos e não esquecer de levar a sua carteira de identidade. Quando chegar lá, se chegar, o Rei pode te acolher ou te mandar voltar.

- Então eu não vou. Pra quê?

- Por que você já não tem alternativa. Daqui onde está é ir ou ir. E não se esqueça, responda as perguntas que o rei fizer corretamente.

Eu sabia que não era assim tão simples, ainda mais num sonho com prazo de entrega. Saí vestida como corredora, levando água num cantil preso à cintura, lenço para enxugar a fronte do suor, óculos escuros para o sol que enfrentaria, boné e um tênis bem confortável. A carteira de identidade na mão esquerda e foi dado o primeiro passo.

No primeiro quilômetro achei que já havia ultrapassado um mundo mas, como ainda me faltavam 29 para vencer, senti o quanto a identidade iria me pesar na mão esquerda. Passei-a pra direita. Corri mais um tanto, ultrapassei uma ponte onde lá embaixo via um pequeno fio de água, e a carteira pesando. Foi quando decidi dar a primeira mordida no canto do documento, um gole d´água.

Um certo alívio. Mais um quilômetro entre a sombra das árvores, os carros no contra-fluxo; quando vi, já tinha comido o meu número de identificação. Os pés se alternando na frente, uma curva pra perto da praça, o coração ainda acelerado pela falta de aquecimento e o nome do meu pai desapareceu, depois o da minha mãe, a data de nascimento, a foto dos 16 anos e por último as tortuosas linhas negras da impressão digital do meu polegar direito. Não tive outra alternativa a não ser mastigar todas estas informações já que o peso era demasiado e o caminho, longo.

Foi quando lembrei do Rei. Ai meus sais, o texto é sobre Rei e eu estou perdida aqui falando de identidade. Faltava pouco, os passos cansados, o coração defibrilando, o sol a pino. Seria duro perder, não entrar, não ser admitida no reino, não fazer parte, principalmente num sonho Real assim. E lá cheguei eu, com direito a Rei na porta e tudo:

- Identidade por favor? - pediu ele.

Sem alternativa olhei praquela realeza e esperei que uma idéia surgisse. Nada. Quando menos esperava, a identidade escondida no aparelho digestivo, despregou-se com um sonoro arroto. E o Rei, sabiamente, soube ouvir o meu nome.

Depois dizem que a gente não pira com estes temas malucos que a Chris faz questão de dar. O que sei foi que acordei aliviada porque, mesmo sem entender a lógica do site dos Anjos e muito menos os motivos deste Rei, ainda sou capaz de sonhar.

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