O REINO DO MEU VIZINHO
NÃO É DESSE MUNDO
(nem o meu)
Ana Luísa Peluso

Monarquia é uma coisa linda, desde que à distância. Em fotos de jornal, algo assim surreal, como se não existissem as imagens que vemos. Como se fosse um conto de fadas ou história, todos aqueles "pom-poms" de vida de monarca. E também não suporto a visita de um representante monarca, para pedir dinheiro para a coroa em época de plebiscito. E não adianta me lembrar que tenho sangue azul. Se aparecer alguém falando em monarquia, outra vez, na minha porta, temo que o sangue fique verde e o olho do representante real, roxo.

Mas meu vizinho não pensa assim. Ele pensa ser um monarca absoluto. E que ninguém lhe tasque a coroa.

Pra começar sua casa é um castelinho mesmo. Tem mais torres que a Av. Paulista e mais quinquilharia do que museu particular, imaginava eu, tentando observar por uma das torres, através da janela da ala sul do castelinho. A rainha, digo, a esposa freqüenta a mesma barraca de verduras que minha mãe, na feira de quinta, e já avisou que não adianta: Antenor acha que é rei! Principalmente depois que entorna seu conhaque de cada dia. É uma cantoria dos diabos, sem pausa para descanso sequer para o almoço.

- Ele come cantando!... - diz candidamente a esposa, enquanto carrega os pacotes de legumes para o carrinho. - E, agora com o nascimento do Antenorzinho, disse que fará um baile de máscaras em casa. A senhora vai, não vai?

Minha mãe chegou da feira esbaforida. Precisava ir ao cabeleireiro, passar na costureira para acertar os últimos remates da fantasia.

- Você tá louca, né mãe? Você não está levando esse negócio de baile á sério, né mesmo?

- Como não??? - e arregalou os olhos, como costuma fazer, quando pensa que estamos contra a vontade dela. - Claro que vou. Não só vou, como vou descobrir se esse homem é rei mesmo!

- Mãe, ele não é rei. É lunático... E, quer saber? Deixa ele na viagem dele...

- E eu na minha. Vou e ponto final. Até por que seu pai ficaria felicíssimo, por enfim saber se o Antenor é rei mesmo, ou...

- Mãe, o pai morreu... Como você vai contar sobre o baile do velho Antenor, e se ele é ou não, rei?

- Tenho meu métodos! Agora deixa eu correr, senão não dá tempo de fazer tudo. E ainda tenho de buscar o colar na joalheria de sua tia. Ou você acha que eu vou na festa do Rei sem jóias?

Suspirei, resignado. Já sabia que com ela não adiantava discutir. Divorciado, voltei a morar com a velha, após a morte de meu pai, e Freud nunca vai explicar, mas a mãe que eu deixei em casa, quando saí há vinte anos atrás para me casar, não era mais a mesma, definitivamente.

Uma colega de trabalho que eu ando paquerando, e anda me paquerando faz tempo, telefonou e diante de minhas queixas, propôs:

- Reinaldo, porque você não aproveita a saída de sua mãe pra gente ver aquela fita do churrasco no sítio do Duarte? Lembra? Foi naquele ano em que nos conhecemos...

Taí. Era uma boa idéia. Sim, vamos ver a tal fita, e quem sabe mais alguma coisa por baixo da sua blusa após o término da fita, pensei resignadamente.

- Tá certo, Amanda. Traz a fita. O meu vídeo não está lá essas coisas, mas quebra um galho...

- Mamãe, a senhora tem certeza que vai vestida assim???

Meu espanto era explicável. Mamãe na minha frente, trajada de "Rainha Vitória", usando o colar mais caro que tia Olga tinha na joalheria. Olhei para meus tênis e abrigo surrados, e me senti um verdadeiro plebeu... Justo eu que tenho sangue azul de verdade...

- Reinaldo, deixa de ser careta! Se você não quer ir, não vá. Mas não impeça minha felicidade, como vem fazendo desde que nasceu.

Engoli quatro Lexotans de uma só vez... Sim, mamãe não era mais a mesma e tudo o que me restava até o horário que marquei com Amanda, era fazer o relatório que o Duarte havia me pedido. E lá fui eu para o escritório, que dava pra ala norte do castelinho, ligar meu velho computador. O bendito demorava tanto para ligar que, não raro, eu cochilava diante dele...

Meia hora de trabalho e escuto uma trombeta capaz de arremessar qualquer um a dois metros longe da cadeira de trabalho, ou qualquer outra. Levantei-me rápido e vi pela primeira vez, a janela da ala norte do castelinho escancarada. Fiquei estupefato! Não podia acreditar no que via... Onde estaria minha máquina fotográfica? A filmadora, eu havia emprestado pra Raquel filmar a apresentação de balé da filha mais nova, um toquinho de gente que "já sabe fazer plié".

- Amanda, Amanda! Atende o telefone. Sou eu, Reinaldo. Preciso falar com você, antes que saia daí. Atende, caralh...

- Oi, Rei... Peraí que estou me ajeitando. Estava saindo do banho. Estou nuazinha, enrolada na toalha verde-piscina que ganhei no último amigo secreto da empresa. Lembra que a Carol me deu a toalha, porque quando fomos ao sítio, esqueci de levar uma, e foi a maior gozação?...

- Amanda, fica quieta. Deixa eu falar. Você tem filmadora?

- Tenho. Por que? O que você está imaginando fazer?

- Nada, quer dizer, tudo. Você traz?

- Levo, ué. Mas, você é um danadinho!... Com essa cara de sério...

- Tchau, Amanda. Te vejo em meia hora.

- Duas horas, Rei, duas... Ainda vou secar o cabelo e lixar as unhas...

Só me faltava essa... Ter de esperar duas horas para ter uma filmadora nas mãos, e poder registrar aquela maravilha que ocorria na castelinho ao lado. E eu, que imaginava que o velho Antenor fosse louco, acabei me dando conta que estava com inveja de mamãe. Iguarias dispostas na grande sala, que agora eu podia ver com maior nitidez, telas de pintores famosos cobriam as paredes e esculturas aristocraticamente dispostas faziam da cena uma miragem! E eu não conseguia imaginar como cabiam naquele cômodo, que com a janela fechada parecia ter não mais do que dez metros quadrados.

Garçons serviam as mesas, e lá estava mamãe trajada de "Rainha Vitória" sentada junto a um senhor que me lembrou Rui Barbosa, não sei porque. Talvez pela barba e os óculos. Amanda demorava, e com isso, minha ansiedade por filmar tudo aquilo, aumentava. Afinal era um "furo". Alguém que vivia como um rei, num bairro de classe média e ninguém sabia disso. Estava decidido: ia filmar tudo e vender para uma agência de notícias. Quem sabe com a grana, eu não conseguia comprar um apê para morar sozinho, longe da Rainha Vitória e seus vizinhos monarcas.

De onde eu estava, conseguia ver a sala, meio de enviesado, então resolvi subir na mureta do terraço do meu escritório (outrora um sótão sem utilidade), e pular para o parapeito que circundava nossa antiga casa. Fui me esgueirando como podia, até ficar de frente para a janela. Assim que botei os olhos na tela que se desenhava à minha frente, juro que só não caí, porque tinha onde segurar: a árvore não podada que fazia sombra à casa de minha mãe e também ao castelinho, generosamente me estendeu um de seus galhos, e foi o que bastou para que eu não me espatifasse no quintal. E na altura dos acontecimentos, já nem sei em qual quintal eu cairia. Talvez em cima do muro divisório...

Afastei esses pensamentos de horror e sangue da minha mente e fui me abaixando até ficar totalmente agachado, para além de não ser visto, poder ver melhor.

Realmente o homem era um rei. Isso eu não podia negar. Ou, ao menos, vivia como um. Me senti assistindo à um filme, ou um daqueles documentários da família real inglesa, onde pessoas eram recebidas à porta com toda honraria possível e no lugar do tapete vermelho que começava na entrada do aposento e terminava no grande círculo de mesas para os convidados, estava um tapete cor de mel. Mas parecia finíssimo! O que se seguiu foram cenas dignas de Windsor e sua corte! O baile começou e notei que mamãe só dançava com o Rui Barbosa. O Rei Antenor fazia as honras da casa, oferecendo a todos, uma jóia de presente. Em cada mesa que ele e a Rainha, digo, dna. Elvira, passavam, deixavam um estojo, que pelo semblante de cada agraciado, dava a imaginar que as jóias eram fenomenais! Consegui ver dna. Cecília (moradora da casa 81) levantar um enorme rubi e coloca-lo contra a luz, talvez para observar a lapidação da pedra, ou mesmo comprovar sua realeza. Exatamente à meia-noite, baixelas com iguarias doces foram depositadas sobre as mesas, fazendo com que todos exclamassem ao mesmo tempo um sonoro "Ohhh!...".

Após a comilança dos doces, os casais todos se levantaram e se colocaram a dançar valsas vienenses.

Eu me sentia tonto e cansado. Estava com as mãos ardendo por segurar naquele galho de árvore, há um bom tempo já. Foi quando me lembrei de Amanda e sua filmadora. Meu Deus, como pudera esquecer Amanda? Uma hora dessas, ela já devia ter terminado de lixar as unhas, secar os cabelos, chegado em minha casa e retornado pra dela. Fiz de conta que não vi o Rui Barbosa segurar nas mãos de mamãe de forma mais íntima, levando seus dedos aos lábios num beijo, e resolvi sair do meu esconderijo. Eu, que já vi de tudo nessa vida de executivo (vi até morena se tornar loira em menos de cinco segundos, à chegada de uma ruiva e espumante esposa de colega de profissão; o gaiato enfiou a secretária dentro do cofre da empresa e a substituiu pela copeira que entrara com o café dois segundos antes da esposa furiosa adentrar a sala e não pegá-lo em flagrante delito de adultério, avisada que fôra...), estava realmente aparvalhado. Foi quando alguém dentro do castelinho gritou:

- Invasão! Invasão à coroa!

Era o velho Antenor, com o neto em um dos braços (o herdeiro), gritando e apontando com o dedo indicador:

- Invasão! Peguem o invasor!

Assustado com os guardas que surgiram não sei de onde, e vinham em direção à janela do salão, me desequilibrei, caindo no quintal do velho Antenor. Sem saber se estava inteiro ou não, pulei o muro, enquanto dois dobermans corriam em meu encalço e o rei gritava da janela do salão:

- Peguem o invasor! Peguem o invasor! Vivo ou morto!

Do quintal da casa de mamãe, ainda podia ouvir os gritos do rei.

Sentei embaixo da árvore para descansar um pouco e ver se estava inteiro. Estava.

Resolvi que não comentaria nada daquilo com ninguém. Tudo só podia ser fruto da minha imaginação. Era isso... Cansaço, o tesão recolhido pela Amanda, que continuaria recolhido, a saudades da Rosa e dos meninos, a volta à casa materna... Sim, era cansaço e ponto final. Não tocaria mais nesse assunto para o resto de minha vida.

Isso resolvido, fui tomar um banho para tirar a lembrança e a sujeira da minha alma e da minha memória. Me servi de uma dose de uísque e resolvi ligar pra Amanda pra me desculpar. Ninguém atendeu. Ela deve ter ficado fula da vida por sair de casa à toa.

"Tudo bem", pensei comigo. Na segunda-feira, eu me explico.

Nem retornei ao sótão para terminar meu relatório, indo direto pra cama. No caminho engoli mais dois calmantes. Eu era puro estresse.

Dia seguinte, sábado, logo pela manhã encontro mamãe na cozinha terminando seu desjejum com cara de quem comeu e não gostou. Quase lhe perguntei se estava daquele jeito, por causa de Rui Barbosa, mas me contive.

- Você tinha razão, Rei. O velho é louco. Nem estavam fantasiados... Gastei uma nota à toa, com essa fantasia de Rainha Vitória... E tudo o que fizemos, foi jogar buraco a noite toda. Tudo o que vi de rei e rainha, vinha acompanhado de ouro, copas, paus e espada... Que fiasco...

- Mas...

- Coitada da dna. Elvira... Teve de ficar na cozinha fritando coxinhas quase a noite toda... Jogou só uma rodada... Além de louco, o Antenor é machista.

- Mas...

- Isso sem falar no surto que o homem teve, ao cismar que havia alguém bisbilhotando a "festa". Imagina... - e abaixou a cabeça, melindrada. - Você acha que alguém ia perder tempo, empoleirado em cima de um muro, pra ver as "jóias da coroa real"? Mas ele jura que viu... Sabe, Rei, acho que estou precisando de férias, e também acho que devo deixar esse sobrado pra você e ir morar com a Raquel. Ela já convidou tantas vezes... Tô velha demais pra ficar achando que algo possa ser diferente do que já foi até hoje. E sei que estou atrapalhando sua vida... Você ainda é jovem, Rei... Rei?

No sótão, o velho computador ainda estava ligado. Travado, como sempre, na tela da planilha eletrônica. Olhei para a janela da ala norte do castelinho. Fechada. Nem sinal de festa, iguarias, cavalarias, valetes, vassalos e convidados. Olhei para o quintal. Os dois dobermans latiram em represália. Olhei para minhas veias azuis. Herança de meu pai. Eu tinha sangue azul de terceira geração, mas tinha, ao menos.

Fiquei naquele silêncio típico dos loucos. Talvez o velho Antenor fosse algum parente que eu desconhecia. Mas o certo é que, algo tínhamos em comum: víamos coisas que só os reis podiam ver.

Desliguei o computador, e com uma baita dor no joelho, pelo tombo da noite anterior, decidi ligar pra duas pessoas: Amanda e meu psiquiatra. Amanda não estava. O recado na secretária eletrônica dizia que tinha viajado.

Nada mais me estranhava.

Liguei para o celular do meu psiquiatra. Marquei para as quinze horas. Sessão de final de semana era mais cara, eu já sabia. Antes de descer para me aprontar, olhei novamente para a janela da ala norte do castelinho.

O velho Antenor estava na janela, com um cetro na mão direita. Na esquerda, segurava uma pedra enorme contra a luz. Um rubi talvez. Olhou pra mim e sorriu. Devolvi o sorriso. Fez um aceno com as mãos fechadas nos objetos que segurava, me chamando pra ir em sua casa. Assenti com a cabeça. Até as quinze horas, ainda havia um dia inteiro para passar.

- Mamãe, vou sair. Não sei a que horas volto. Pode ser que nem volte. Pode ser que Amanda me ame. Pode ser que não. Não vá morar com a Raquel, porque o Murilo odeia você. Sei disso desde que jogávamos vôlei na escola. Meu talão de cheques está todo assinado. Está em cima da mesa do escritório. Eu sempre te amei. - e dei um beijo na bochecha da despenteada Rainha Vitória, vestida com uma camisola puída, as varizes habitando-lhe as pernas.

Ela nunca me disse, mas deve ter estranhado ao me ver sair, vestido de Robin Wood.

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