O REI E O ESCRIVÃO
Alberto Carmo

Em certo reino, formado ao redor de garboso castelo, vivia um rei, pródigo em ditar leis ao seu povo. Não havia dia em que não fizesse nascer calos no dedo do escrivão. Ora novos impostos, ora nova cota sobre a colheita. A pena ciscava no papel que dava pena.

Certo dia, depois de um sonho onde se via lavrando a terra e os melhores frutos da colheita sendo levados pelos recolhedores de impostos, quis o rei se aproximar do seu povo.

Chamado às ordens, o escrivão apresentou-se ao monarca: - Chamaste-me, majestade?

- Sim. Dá-me tua caneta, pois hoje serei o escrivão de meu povo.

- Mas...

- No ifs, ands, or buts, escrivão! Dá-me tua caneta.

- Aqui está, majestade! - exclamou o pobre escrivão.

O rei postou-se à escrivaninha de ébano, ajeitou os joelhos e ordenou: - Agora dita, escrivão!

- Ditar? Eu? Mas, majestade...

- Ordeno-te! Dita!

- Mas o que devo ditar, majestade?

- Dita o que quiseres. Agora sou escrivão do meu povo. Dita o que desejares...

- Bem... eu...

- Dita, ignóbil!

- Dito que meu povo não mais sofrerá a opressão de meu rei, que terá direito ao melhor da colheita. Que não terá suas filhas molestadas pelos soldados, nem os jovens recrutados para guerras contra seus irmãos...

- Grumpf! Dita mais!

- Dito que meu povo fará jus às melhores refeições que seus frutos lhe proporcionem, e ao melhor vinho que produzirem...

- Até o da minha safra reservada?

- Sim, meu rei. Principalmente esse vinho...

- Grumpf! Prossegue, escrivão!

- Dito que meu povo não mais passará frio nas neves do inverno, nem pisará descalço nas pedras do reino, a cultivar as terras de meu rei...

- Grumpf...

- Dito que as mulheres não mais passarão as tardes a tecer a melhor lã para o luxo da rainha, e que os jovens não mais serão chamados para limpar os estábulos de meu rei...

- Mas...

- Ditei, meu rei...

- Grumpf!

- Dito que meu rei deverá se reunir diariamente com os representantes de seu povo, ouvir-lhe as lamúrias e dispor de moedas de ouro que as amenizem...

- Mas que... grumpf!

- Dito que meu rei não ficará mais com três quartos do ouro colhido pelo povo nas minas. Que mandará seus engenheiros construírem túneis mais seguros. Que cada trabalhador morto em serviço tenha a família protegida pelo arrimo de meu rei...

- Até os incompetentes?

- Até eles, meu rei...

- Grumpf!

- E dito que meu rei porá seus príncipes a trabalhar com seu povo na labuta diária...

- Como? Meus herdeiros sujando as mãos no...

- Tudo está ditado, meu rei...

- Aqui está! O que achas? É minha nova lei!

- Digo que meu rei carece melhorar a caligrafia, pois seu povo não entenderá o que foi escrito...

- Ignóbil! Agora tu escreves, e eu dito!

- Estou pronto, majestade...

- Estão revogadas todas as disposições...

E o reino continuou como dantes no quartel de Abrantes.

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