UM REI FORA DE CASA
Alberto Carmo

Há um rei sem herdeiros, cuja dinastia solitária vem de muito tempo. Acompanha-nos pela vida, sela-nos o suspiro final.

Já ao nascermos, lá está ele, a nos amparar, indefesos. Cobre-nos com felpudos agasalhos, poupando-nos de alfinetadas, embora as tenhamos no decorrer do percurso. Mas jamais dele, fidelíssimo em seu reinado pueril.

Na infância, diverte-nos com jogos, ensina-nos a disputa leal, e a conquista da glória com nossa habilidade. Não poupa esforços, corre daqui ali, e acolá, sem medir distâncias. Mostra-nos como domar a força que nos impele a falta de domínio.

Acompanha-nos os pensamentos, apura-nos as idéias, breca-nos a impaciência. Mantém-nos as mãos ocupadas, como a impedir que delas partam agressões. Retém nossa violência em compasso de carinho. Suporta-nos a fúria calado, mesmo que o arranquemos de nós em momentos de loucura.

E quando, já apaixonados e cegos, alerta-nos no conselho materno, a ensinar que fujamos das moças casadoiras, despreparadas, que sequer saibam lidar com ele, embora nos passem ilesas as sábias palavras, pois a paixão jamais é prática ao brotar. E mais tarde, quando sozinhos aprendemos a dar-lhe trato, choramos de saudades da mãe que nos avisou. E diante do modernismo ocioso, cujo encanto preguiçoso deixou-nos à míngua de uma mulher verdadeira, voltamos a ele, outra vez, nossas lamúrias e pensamentos, já o tendo a esta altura sob nosso controle.

E quando lida com as mulheres, ele, cavalheiro guardião, as ensina desde novas a poupar a pressa das delicadas mãos, sugerindo uma armadura que as proteja. E elas vão delineando gestos pacientes, ao preço do próprio sangue.

E mesmo na máxima tensão humana, desafia ele nossa idéia doente. Sábio, veste-se de rubra cor a desafiar a impertinência dos homens. Quantos já lhe quiseram violar o silêncio; mas, covardes demais, sufocaram os ímpetos em salva-guarda, a provar a indolência de enfrentar a própria criação.

Generoso, ensina-nos os caminhos do amor enlevado de desejo. Discreto, segue-nos a paixão apressada, revela-nos, aos poucos, as formas irresistíveis da mulher amada. Afasta-se lento, às vezes misturado a gestos afobados, e nos deixa voar nos braços que nos embriagam os sentidos.

Invejado, tentam-no abandonar por seres mais rápidos, na idiotice da pressa maníaca da civilização. Modesto, não faz alarde. Aguarda-nos a maturidade, que nos faz entender seu encanto vagaroso, profundo.

Mesmo numa era tecnológica, onde tudo deve ser servido rapidamente, onde não se espera pelo aroma, a se beber tudo de um só gole, ele está presente. Por mais apressados, os infelizes de um tempo superficial têm que passar por ele, a lembrar-lhes das garoas mais perfumadas que as tempestades.

Segue-nos nos altos e baixos, protege-nos a morada. Às vezes, mesmo sabendo que nunca nos abandonará, ele ruma tranqüilo, ainda que mantido a nós amarrado; nós, que dele só lembramos quando nos falta.

E assim, quando um dia cansados, felizes ou não, plenos ou vazios, no aguardo de um novo limiar, ele estará lá, acompanhando-nos como fiel escudeiro, a fechar-nos a última veste.

Longa vida ao rei, o BOTÃO!

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