CARTA AO SÍNDICO
Reinaldo de Morais Filho
Olá, seu síndico.
Sou o porteiro. E sei escrever.
Em primeiro lugar, detesto ter que me apresentar desta forma nas minhas cartas. Como o padeiro que responde 'não é ninguém', quando o dono da casa pergunta quem chama, aos berros. Mas, entendo o preconceito, os números me são desfavoráveis.
Vamos ao assunto principal: a reclamação. Hoje é quarta-feira, meu dia de plantão. Todos os empregados têm o seu a cumprir, e o meu caiu em uma quarta-feira.
Sou o sortudo para muitos. O final-de-semana está salvo. Que final-de-semana?, pergunto. Sou porteiro, embora saiba escrever. O salário é curto, o mês é longo, a vida é cara. E minha mulher está sempre insatisfeita.
Trabalho aos sábados e domingos. Tenho uma barraca de frutas em um mercado. Passo os dias fazendo ofertas, carregando caixas pesadas, discutindo com os fornecedores. Deixo para descansar na segunda, na portaria.
Por isso estou aqui. Algumas pessoas olham para mim e eu sei que sentem pena. 'Coitado'. Meros instantes, milésimos de segundo. 'Também, se fosse mais inteligente não seria porteiro', pensam em seguida. Nem todos: eu estou aqui por opção.
Quase opção. Não poderia ser advogado, médico, empresário, rico. Algumas barreiras são intransponíveis. Porém, escolhi assumir a portaria quando vislumbrei a possibilidade de estudar nas horas vagas - achei que estes instantes fossem mais constantes.
'Nem sei por que o interesse nos livros', minha mulher comentou. Que absurdo uma pessoa dizer isso sobre o conhecimento, não vê as chances, as oportunidades, o valor. Às vezes me pergunto o mesmo que ela. Em voz baixa. Não se deve repetir essas coisas. O que seria da esperança?
De qualquer forma, o ponto principal não foi mencionado. Quer dizer, foi mencionado, mas ainda, não esclarecido. Desculpe a enrolação, seu síndico. Saber escrever não significa ser sucinto, claro, conciso. Não quer dizer que sei escrever bem, embora meu vocabulário não seja chulo, caricaturado, insuficiente.
Falta-me concisão, com certeza. Então, sejamos diretos. O plantão da quarta-feira me incomoda. Não que esteja querendo modificar as regras, ou me insurgir contra a hierarquia. Aceito o plantão, uma vez por semana. Apenas gostaria de mudá-lo para o sábado.
Ou domingo. Qualquer outro dia. Pois na quarta-feira minha esposa tem folga no hotel onde trabalha por toda madrugada. É o único dia que poderíamos dormir juntos. Nosso final-de-semana é no meio da semana. E o plantão atrapalha meus planos, corrói o casamento a cada telefonema que ela me dá, durante a noite, pedindo para eu correr até em casa, para lhe fazer companhia, para lhe dar carinho. O senhor sabe como as mulheres são carentes...
Tentei falar com os colegas. Nem se sensibilizaram. Talvez por saber escrever, talvez por ter uma mulher bonita, talvez por saber o que é ser porteiro e querer mais, os colegas nunca me fazem favor, não me chamam para as peladas, recusaram meus pedidos de transferência.
Não importa. Um amigo sempre dizia para falar os problemas com quem manda. E aqui quem manda é o senhor. Se falar para varrer o salão, eu varro; se falar para regar as plantas, eu rego; se falar para dar plantão na sexta-feira, eu dou.
Mas, por favor. Não me peça para esquecer meu casamento, para abandonar o emprego, para esquecer a ciência e me juntar à ignorância, onde gente como eu tem mais chance de ser feliz, onde eu possa, ao menos, ficar entrosado com os colegas de profissão e conseguir a permuta.
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