BAILE DOS BEBÊS
Reinaldo de Morais Filho
Poderia ser uma quarta-feira como outra qualquer, mas não era. Quarta-feira de cinzas, dia do baile dos bebês em um quiosque na praia do Leme. Não era mesmo um dia comum.
Ainda mais para R., que mora no prédio em frente ao referido quiosque. Mesmo que pudesse evitar o contato, impossível não presenciar o chamego, não ouvir os berros, não sentir o gosto das lágrimas escorrendo junto com a maresia.
Sim, um dia ele já havia sido um bebê. Esqueceu, rasgou as fotos que a mãe lhe enviara, mudava de assunto nas reuniões familiares. Criou um pavor inexplicável, insustentável, contra os pequenos rebentos, que o próprio não podia, não tentava, explicar.
Morava no final do Leme, duas avenidas separando a portaria da areia branca, da água gelada, do mar azul, da praia carioca. Vivia só, latu sensu. Herdara, do avô, uma cobertura duplex e se isolou do mundo, apegou-se ao êxito material, ao sucesso financeiro que surgiu em cascata logo em seguida.
Do pequeno apartamento que alugava no Leblon, dividindo com três amigos, lembra-se dos momentos ruins, da impopularidade, do desprezo que lhe davam os garotos ricos da Faculdade. Lembra-se de si mesmo como a alcunha que os colegas o batizaram: um retirante.
Sempre armazenando na memória os insucessos. Sempre culpando alguém pelos infortúnios. Como se as derrotas fossem o estímulo necessário, como se a identificação de um alvo fosse o objetivo da vida.
Talvez esta seja a única possível explicação para o pavor que tinha dos bebês. Mas, como ter certeza? Repugnava-o, como uma barata espanta uma mulher, como o escuro amedronta uma criança inocente.
Era, ele, uma criança inocente. Identificava-se nos seus olhos uma alma juvenil, ainda que estivesse apagando vinte e cinco velas, ainda que estivesse de terno e gravata, saindo para o trabalho. Um jovem triste que sentia a necessidade de crescer, enquanto se aprisionava em um mundo que não teve a chance de aproveitar.
Correu para a janela assim que acordou, como se quisesse acreditar que era possível que ninguém apareceria na festa, que o baile seria cancelado, ou que uma chuva varresse as pequenas ameaças para longe dele. 'Para Copacabana, que fosse!'
Alguns carrinhos de bebê já estavam estacionados em frente ao quiosque, uma marchinha carnavalesca animava ao fundo, os pais conversavam, contentes, entre um cafuné e outro na cabeça dos respectivos rebentos. A calçada já estava lotada, com uma hora de antecedência.
Impacientou-se. Esqueceu o jornal amassado ao lado do sofá, repetiu três vezes o prato de sucrilhos com iogurte, ligou a televisão, colocou um CD de Chet Baker para esquecer o carnaval. Não se concentrava em nenhuma tarefa, e teimava em ouvir um choro infantil subindo por sua janela.
Nenhum nenê chorava lá embaixo.
Precisava sair. Tomou uma ducha às pressas, vestiu-se e correu para a garagem. Teve uma idéia demoníaca, de acelerar por toda Avenida Atlântica, chegar no Leme a uma velocidade absurda e invadir a calçada, mandar a festa, o quiosque, o choro para os ares.
Acordou assustado dos seus devaneios e preferiu sair a pé. Talvez por temer a realização do plano; talvez por querer se aproximar do baile. Nem que fosse para esbravejar, reclamar do barulho, arrumar uma confusão, pôr fim na festa, ao menos interrompê-la um instante.
Parou na portaria. Conversou com o porteiro, mostrou-lhe o absurdo. 'Que absurdo?' Saiu de perto, colérico com a imbecilidade do outro, que não enxergava a ofensa diante do próprio nariz.
Há tempos os moradores - e também os empregados do prédio - já se acostumaram com o comportamento ranzinza do jovem, com os gritos histéricos, a impaciência, o jeito ancião. Acostumaram-se sem entender.
R. parou em frente ao quiosque e viu que uma brisa que lhe tocou a sua face, tornou suas lágrimas geladas. E viu que estava chorando, por seus próprios olhos. E viu que as crianças que o cercavam estavam rindo, com um sorriso desdentado, com um semblante alegre.
Bastou chegar perto para perceber a loucura que espreitava na casa vazia; o mundo solitário em que se trancou, a vida superficial que construía, a estrutura frágil dos seus relacionamentos. E não ouviu outro choro que não fosse o seu.
O gosto da lágrima não azedou mais a boca quando o pranto estancou...
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