CINZAS
Reinaldo de Morais Filho
Irene acordou tremendo de frio. Estava nua em sua cama, com a amiga Mirela tomando todo o seu edredom, ocupando metade da cama, cheirando a cachaça. A sua cabeça doía, o corpo estava dormente, a boca, ressecada.
Demorou alguns instantes a interpretar a situação, a perceber que perdeu a consciência na noite anterior, que não se lembrava do que ocorrera na festa de carnaval na casa da prima Conceição. Era Quarta-feira de cinzas.
Morava sozinha em um amplo apartamento na Vila Mariana, em São Paulo. Os pais se mudaram para o interior paulista, e ela não quis acompanhá-los, largar a faculdade, trocar de amigos. Conseguiu liberdade sem ter que ser ela a deixar a casa.
Mirela tornou-se sua cara-metade, sua companheira inseparável de farras. Fazia-se de surda diante da opinião de suas outras colegas, que a achavam interesseira, fútil, vazia. Mirela lhe era tão carinhosa.
No entanto, deveria estar acomodada no quarto de hóspedes, onde a largou na sexta-feira, quando ela chegou de mala e cuia para passar o carnaval. Mala, cuia e mapa da comemoração do momo.
Pôs-se de pé como pode e chegou na cozinha. Sede e fome e dúvidas. Lembrava-se da festa na noite anterior: perfeitamente o 'antes', de forma vaga o 'durante', nada do 'depois'. Bebeu dois litros de água, comeu o resto de pizza e perambulou em busca de respostas.
Abriu o quarto de estudos. Nenhum movimento, nenhum vestígio. Em cima da escrivaninha, o livro com a biografia de Che Guevara, a agenda com as anotações, os cadernos da Faculdade abandonados há uma semana.
Sentou-se próximo à janela, diante da fotografia de Mauro, o ex-namorado. Ainda não houve tempo para mudar o porta-retrato. Também não houve tempo para se recuperar: uma lágrima caiu por sua face. Talvez por isso tenha bebido tanto.
Andou até o quarto de hóspedes, onde Mirela deveria ficar. A porta estava encostada. Entrou de ponta de pé, talvez houvesse uma pessoa dormindo ali. Havia. Dois homens desconhecidos dormiam abraçados, despidos, sem se incomodar com a luz que vinha da janela.
As suas pernas cambalearam. Mas, ainda assim, conseguiu chegar no banheiro. Vomitou por todo o piso de porcelana. Tremia de medo, de vergonha, de dúvidas.
Talvez uma grande orgia se realizou naquela casa na noite anterior. Correu até o quarto dos pais. Deveria estar fechado, com todos os objetos valiosos, os quadros, os cristais, no grande armário. Não pode ter perdido o juízo por inteiro.
Estava aberto. Chorou antes de entrar. Abriu cuidadosamente a porta, fechou os olhos, rezou. Deu certo. Ninguém dormia por ali, nenhum vestígio de bagunça ou dano. Quase tudo como deveria estar. Apenas a gaveta aberta.
'Não há nada naquela gaveta.' Era o armário de roupas íntimas de sua mãe. Estava revirado. Roupas íntimas e instrumentos eróticos: um vibrador, um chicote, algemas e camisinhas. Levaram a pequena loja de sexo.
Correu até seu quarto, em desespero. Mirela continuava em sono profundo. Tentou acordá-la, mas, precisava se recuperar, desistiu. Voltou ao quarto de hóspedes, entrou preocupada com o que ia encontrar, revoltada com o que fizeram com ela. Estava bêbada, isso é quase um estupro.
Tremia quase convulsivamente. O peso dos seus princípios forçava suas costas. Já tinha vinte e um anos e apenas teve relações com dois homens, dois namorados, compromissos sérios. Perder a virgindade antes do casamento já lhe era uma mudança suficiente. E agora, estava envolvida em um bacanal, com sujeitos que nunca viu antes.
Achou os utensílios ao pé da cama. Os rapazes estavam algemados, o vibrador, ligado na tomada. Camisinhas usadas completavam o cenário promíscuo. Sentia o pecado no ar que sugava, a luxúria. Sentia-se invadida, possuída por um mal que lhe ofendia.
Chorou na sala, sentada sozinha no grande sofá. Por duas horas, ou um pouco mais. Nem percebeu os hóspedes se aproximando. Estavam vestidos, libertos das algemas, com um semblante preocupado. Sabiam que era a hora do arrependimento.
Carlos, o que parecia mais velho - quem sabe mais acostumado com a situação - começou a explicar, enquanto um certo ar de alívio tomava as feições de Irene. Eles eram namorados, gays, completamente homossexuais. Ela ofereceu a casa; aceitaram, com a condição de dirigir o carro (não bebiam, não fumavam, eram os únicos sóbrios).
Irene ofereceu os objetos eróticos, liberou o sexo, colocou Mirela em sua cama. Mirela estava quase desmaiada, ainda pior que Irene. Eles trancaram-se no quarto e procuraram se divertir sem fazer barulho, sem incomodar.
Estava salva. Um sorriso, o perdão. Despediu-se dos colegas, até os convidou para jantar, anotou os telefones, endereços. E cuspiu em cada papel quando eles saíram. Ferveu os lençóis, esfregou o chão, jogou fora os brinquedos.
Tomou um banho, por fim, como se fora contaminada por uma peste. Esfregou as mãos, lavou o rosto, cuspiu outras vezes. Detestava homossexuais e acabara de convidar dois para transar em sua casa. Pelo que disseram, insistiu para que ficassem lá. 'Mas pode ser tudo mentira. Malditos!'
Arrumou a casa, vestiu-se, preparou o café da manhã. Cobriu Mirela que se mexia, inquieta, na cama. E ficou olhando sua face, acariciou-lhe o cabelo, tocou-lhe maliciosamente os seios.
Voltou para a sala. Com aquele toque, os carinhos, a imagem da amiga nua sob seus lençóis martelando em sua cabeça. 'E se eu gostar dela? E se eu quiser transar com Mirela? Só por curiosidade...' Não podia. A sociedade lhe recriminaria, ela própria não se aceitaria.
O quarto se abriu. A companheira levantou-se. Espreguiçou-se em sua frente, completamente nua, com o corpo perfeito cheio de marcas: amassado, vermelho, arranhado. Engoliu seca a saliva. Teve flashes da noite, da madrugada, do sexo, das experiências.
Mirela se aproximou, andando a passos firmes, enquanto Irene sentia arrepios por todo o corpo. Beijou os lábios trêmulos da colega, abriu um sorriso sincero e agradeceu. 'Nem sei por quê.' Sabia.
Tomaram café sem desgrudar o olho uma da outra, sem comentar o que aconteceu, com a certeza de que não foi mais do que uma aventura de carnaval. Talvez devam esperar até o próximo.
Era quarta-feira de cinzas, hora de varrer os estragos da festa que a vida às vezes se torna. Varrer para fora da casa, com cuidado para que nenhum vestígio se esconda debaixo do tapete, pois o cheiro ruim das sobras atrapalha a rotina, o aroma da perdição, da luxúria, do carnaval, desestabiliza os planos, sopra os versos profanos da tentação ao pé do ouvido.
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.