VÔO
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Luís Augusto Marcelino
Conheci Yone numa segunda-feira. Seria o natural, foi numa sala de aula. Tudo no mundo parece começar às segundas-feiras. A semana, o batente, os ônibus lotados da Avenida Santo Amaro (aposto que começaram a circular no que se convenciona chamar de primeiro dia da semana). Yone era o que se podia chamar de garota comum. Nem feia, nem bonita; nem tão inteligente nem tão porta. Sempre odiei mulheres comuns, porque elas me levavam ao óbvio. Detesto coisas óbvias. Los Angeles Lakers vs Francana, Magic Johson de pivô - não perderia meu tempo. Deve ser porque só fazia coisas absolutamente previsíveis. Levantava às seis e meia, corria para o banheiro, escovava os dentes com Kolynos, tomava banho com Phebo. As marcas do meu tempo estão desaparecendo aos poucos. Ainda vejo o Phebo nas prateleiras dos supermercados, mas já não tem o mesmo glamour de antes. Minha mãe sempre estava na cozinha ou no quintal. O pai saía cedo, bem cedo, para a metalúrgica na Barra Funda. Naquela época o pai ganhava bem - como se dizia antigamente. Ao final de cada mês levava uma cesta básica para casa. E eu adorava aquela cesta, porque sempre vinha marmelada ou marrom glacê. Precisamente às 8h15 eu picava o cartão. Não sei se ainda se pica o cartão, mas eu picava. Dava uma enroladinha até Dona Marta chegar, meia hora depois. Devia estar lá mais cedo, mas desconfio que ela dava para o Everaldo, nosso chefe. Era a única que não era retaliada ao chegar atrasada. Centro, Paulista, Santo Amaro, Cafundó do Judas... levar e trazer papéis. Matar passe de ônibus, jogar fliperama, ficar olhando cartazes de filmes pornôs, tomar mate com leite na São João, comer churrasco grego, sentar num banco e ficar apreciando as pernas das moças elegantes que transitavam pelas ruas na hora do almoço, presenciar pequenos furtos, discussões por causa de putas, de vagas de estacionamento, de clássicos do fim-de-semana. Esta era a minha rotina. Tudo muito óbvio. À noite ia para o colégio. Quase sempre chegava atrasado e perdia a primeira aula. Tinha um professor - acho que era Alceu, mas não lembro qual a matéria que o fdp lecionava - que ficava puto. Um dia não me deixou entrar. Quis mandá-lo para tudo quanto era lugar, mas não tive coragem. Já tinha perdido um monte de matéria. Fiquei no corredor depois que ele fechou a porta, em dúvida se desistia das outras aulas, se permanecia ali, se descia para o pátio. No fundo, o que mais desejava era abrir a porta e mandar o professor se foder. Hesitei por alguns minutos, ia me dirigindo à escadaria quando Yone apareceu bem na minha frente.
- Atrasado, também? - ela perguntou.
- Pois é, o Alceu não dá boi.
Era o início do segundo semestre e, depois fiquei sabendo, Yone estudara na parte da manhã nos primeiros meses do ano. Arrumou um emprego num banco e teve de mudar de turno. Para minha sorte, para meu azar. Nunca soube direito.
Foram quatro meses entre aquela segunda-feira e a despedida da turma, em dezembro daquele ano. Nada muito especial, um amigo, o Charles - que na verdade se chamava Carlos; quer dizer; Raimundo Carlos - ofereceu sua casa. Uma casa muito espaçosa com uma imensa área ao fundo que daria para construir uma piscina. As garotas levaram uns salgados e os rapazes providenciaram as bebidas. Música alta, comentários acerca dos professores, das outras turmas. Na época tinha discutido com Yone, nada sério, mas estávamos um de cara amarrada para o outro. É que chegara ao ouvido dela que, instigado sobre estarmos de namorico, respondi que Yone não fazia o meu tipo. Uma dissimulação medíocre, própria de um imbecil como eu, para que ninguém soubesse da paixão que estava sentindo pela mais antipática das garotas da sala. E nem era tão bonita assim, segundo os meus amigos. Rolava de tudo no som, mas principalmente as bandas brasileiras que começavam a emergir. Nosso DJ, a certa altura, resolveu dar um descanso aos esqueletos dos que dançavam. Houve um princípio de chiadeira, mas a maioria se rendeu à suavidade de Johnny Rivers e suas baladas açucaradas. Eu tinha tomado bem uns cinco copos de ponche e, de onde eu estava, próximo a uma churrasqueira de alvenaria erguida na parede do fundo do quintal, movimentava o pescoço toda vez que percebia a chegada de alguém. Pedi para uma amiga ver se Yone estava em casa. Não estava. Tinha saído com a irmã, e a mãe não sabia a que horas voltariam. Fui ao banheiro. Desde então nunca mais misturei ponche ou qualquer outra bebida doce com cerveja. Não cheguei a vomitar, mas tive de lavar bem o rosto para recuperar um mínimo que fosse de sobriedade. As músicas românticas continuavam tocando, e sentei-me no sofá. Uma mão delicada tocou minha cabeça, enquanto assistia um programa qualquer que passava na tv. Era Yone. Abri um sorriso chocho, mas a cumprimentei. Yone não parecia mais Yone, não sei explicar ao certo. Havia algo diferente em seu sorriso que até hoje não decifrei.
- Dança comigo, Marcelo?
* * *
Quando soube que fui escalado para aquele vôo para cobrir a doença do Roberto quase pedi demissão. Véspera de Ano Novo, três dias de folga, Mônica me esperando em São Paulo. Liguei do celular. Ela mal se despediu. Mulheres não entendem alguns compromissos. Belém-Brasília, um inferno. Só faltava o Jader contando histórias de rãs e pererecas para o assessor. Embarque às 23:15. Decolagem prevista para as 23:45. Conferir bandejas de refeição, quantidade de garrafas de refrigerante, certificar-se de que travesseiros, sacos higiênicos, apetrechos do lavabo, etc eram suficientes para os passageiros. Tudo muito rotineiro, muito óbvio. Gente puta de ter que voltar para o batente, eu e as meninas treinados para sorrir - sempre. Para sermos gentis - sempre. Para engolir sapos (mesmo que os da mulher do Jader) - sempre. Já tinha chegado à conclusão de que minha vida era banal demais. Faltava-me um empurrão para meter o pé na jaca. O que sempre emperrava era o meu temperamento subserviente. Tantas foram as vezes em que tive a oportunidade de me dedicar ao que realmente gostava, mas algo segurava meu ímpeto. Fui parar numa companhia aérea. E pensar que estudei Inglês única e exclusivamente para formar uma banda de Rock e imitar os Rolling Stones. Veio-me à mente as enfadonhas aulas no Fisk, eu querendo tocar bateria, tocar em Tokyo, em Turim. Malditos aviões e malditos passageiros! - pensei. Nada me irrita mais do que o ritual patético dos procedimentos para o caso de acidentes. Não agüentava mais aquilo, era um inferno.
- Um Campari, por favor. O que vai querer, meu bem?
Bem ali, na poltrona 23, com a cabeça escorada pelo ombro de um homem que me pareceu bem mais velho, Yone. Yone sem seus óculos de grau e sem suas madeixas negras. Trocara os cabelos compridos por um corte mais moderno, bem curto, brincos de argolas imensos dependurados em suas orelhas delicadas. Ele quis um uísque. Ela queria um Campari, mas não recordo de Yone gostar desta bebida. Quinze anos se passaram, é certo. Em quinze anos muitas coisas podem mudar. Seu cabelo tinha mudado, seu corpo, seu paladar, seu jeito tímido. Pareceu-me tão desinibida Yone...
Fiquei inerte por alguns instantes. O acompanhante de Yone me chamou a atenção. "Não ouviu o que a moça lhe pediu, rapaz?" Pedi desculpas e a servi apressado. Mais uma vez engoli algo que não queria engolir. Segui em direção à parte traseira da aeronave. As pessoas me pediam as coisas, eu as servia. Tudo muito óbvio, como sempre. Como foi o encontro que marquei com Yone depois daquela festa de final de ano, há quinze anos. Combinamos de nos encontrar no Largo do Arouche, às seis e meia, numa quarta-feira. Comprei um pequeno ramalhete de flores, cheguei quinze minutos mais cedo. Sentei-me numa das mesinhas do Arouchão. Ensaiei cada uma das palavras que diria à minha amada. Ela chegou radiante, trouxe-me um livro com uma dedicatória. Conversamos durante toda a noite. Rimos, ficamos silenciosos, eu sentia uma vontade de segurar suas mãos. Talvez não dizer nada do que havia ensaiado, mas pelo menos segurar suas mãozinhas finas. A noite passou. Quinze anos se passaram.
- ... o Comande Azevedo e toda a tripulação desejam a todos um Feliz Ano Novo!
Yone não me reconheceu. Ano novo, vida nova. Nem tão nova assim. Era uma quarta-feira. Quarta-feira é o dia mais morno da semana. Minha vida é morna. Muito morna.
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