À HORA DO COSTUME
Jorge Silva
A estação do metropolitano fervilhava de agitação. Hora de ponta, gente apressada, rotinada em apertões. Engavetados em vida, no caminho para o trabalho e para casa como a linha, sempre igual à do dia anterior. A rotina que os encerra num percurso em circuito fechado, repetido, a chama que se perde a chamar por um futuro melhor. Que não se proporciona, raspadinha, loteria, totolotos aos milhões para a sorte de alguns. Poucos, os que escapam da engrenagem...
Aquele ali, sentado ao pé do anúncio irritante e boçal de um gigantesco hipermercado, esse mesmo. Rapazola, vinte e poucos, enfiado até ao pescoço num uniforme de vencedor, engravatado, espartilhado no amor pelo torniquete da ambição. Baços, os olhos por detrás dos óculos caros. Ilusão de grandeza, sem crédito na alma para a cobrir. Saldo negativo, bancarrota, falência do desejo e hipoteca da razão. Componente do sistema, peça plástica de uso efémero, muito fácil de substituir. Com garantia. Enquanto a ganância reinar.
Nem preciso de procurar muito, mesmo ao lado a vaporosa. Quarenta, talvez, menos uns quantos, abafados a custo em maquilagem exagerada e roupa fina de boutique. Na moda, disfarçada de mulher incapaz de dissimular a ferida da força do desinteresse em casa, na cama, que a enxovalha e amarrota, a reduz. Olhar triste, pousado na linha que a leva para o outro lado do avesso em que a sua vida se tornou. Nem assim lhe faz sentido a negligência, impotência dos homens na arte de fazer feliz a companheira de uma vida inteira.
Alimenta na cobiça dos olhares que lhe deitam os homens que passam a esperança de ser desejada outra vez. Em casa, onde mora o alvo certo para o ataque da tentação. Em vão. Talvez resulte amanhã.
Cigarro fumado, aceso, lançado à pressa para o meio dos carris, contrariado o viciado passageiro que nem se importaria de esperar mais um pouco. O outro que o acotovela não pensa assim, agradece à empresa a presteza com que faz surgir do fundo do túnel a luz pontual de uma moderna composição. Quase sorri, satisfeito, relógio de pulso acertado seis vezes ao dia pelo noticiário de uma rádio FM, cronómetro certeiro das coincidências milagrosas que lhe recuperam o atraso nas filas de trânsito, intermináveis, até à estação terminal. Gostos para tudo, cabeças às centenas, sentenças exemplares, cada uma com a sua, pendente de um acaso ou em plena execução. Defronte de qualquer pessoa, de um amigo, talvez...
Alguém para desabafar outro dia mastigado à pressa sob a pressão constante do ponteiro, do dinheiro que tudo nos incita a ganhar, preto ou vermelho, aposte no trinta e um. Um sarilho, quando se aumenta a parada em função daquele palpite, o infalível, que na hora da verdade se desmascara impostor e nos trai. Azares que o destino nos apresenta, desafios para enfrentar.
Já a última carruagem se dilui no fundo de breu, pelas entranhas da urbe, quando chegam ao cais os menos afortunados da remessa que partiu. Ofegantes, alguns. Ficaram para trás, uma maçada. Outros que consultam no painel electrónico o tempo que lhes resta para lerem o jornal. Outro pedaço, leitura em retalhos de pausa forçada, à espera do capítulo seguinte de um trajecto habitual. Novidades que se anseiam, histórias. Para comentar com o parceiro do lado, nariz enfiado no teclado enfadonho de um computador. Conversa banal e afinal absolutamente desnecessária que o outro já conhecia o assunto, todos os dias folheia o mesmo periódico. Pelo caminho, também.
E a jovem que assiste, divertida, ao desempenho trôpego de um imberbe sedutor? Uma cena divertida. Diferente, ardente, tão empenhado o rapaz na eficácia do cortejo. Desejo alucinado, desvairado, impulso de adolescente, aprendiz dedicado dos segredos da paixão. Nenhum dos dois repara no rosto contorcido em esgares de reprovação, uns passos atrás, a senhora matrona, despeitada, embaraçada pelos debochados propósitos da juventude actual. A mesma conversa da geração que a precedeu, tradição secular, maldição perpetuada pelo contágio invejoso, desdenhoso. O mesmo ar afectado de quem perdeu, no fundo do baú, a memória antiga da felicidade que sentia e já não sabe compreender. Há muita gente assim, em qualquer aglomerado de pessoas, uma estatística maçadora.
A estação está repleta outra vez. E o material circulante cumpre a função. Circular. Sobre si próprio, para trás e para diante, cumpridor. O halo de luz que o precede anuncia a chegada, ansiada, de outra fornada de cidadãos, utentes ligeiros do transporte colectivo, massivo, de lotes infindáveis, parcelas de multidão.
A buzina metálica, esquisita, avisa os que arriscam entalar-se nas portas automáticas: está na hora de empurrar, de comprimir um tudo nada a amálgama interior. Aos mais atrasados, o apito apresenta cumprimentos de despedida. Ficou verde o sinal de partida. Adeus.
Depois, a hora de ponta acaba.
Na estação deserta ecoam os sons lá de fora, para onde a vida da cidade se transfere. Mas eu, inveterado voyeur, alma penada, parasita de imagens das existências alheias como de uma novela da televisão, permaneço indiferente e aguardo optimista o regresso do meu programa preferido.
Hoje é quarta-feira e amanhã haverá hora de ponta outra vez.
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