QUARTA-FEIRA FUGIU DE CASA
Humberto Bley Menezes

Buiú é um guri que anda pelas ruas ajudando seu pai e a sua mãe a catar papel, latas de alumínio e tudo que pode ser vendido e reaproveitado. Gosta muito de correr pela calçada, com seu amigo Quarta-Feira, um cachorrinho muito esperto que neste dia da semana resolveu abandonar a casa muito grande e bonita na qual morava, para acompanhar Buiú pelas ruas da cidade. Recebeu o nome de Quarta-Feira. Muitos outros o haviam precedido. Todos acabaram por abandonar a jornada, Segunda, Terça, Sexta-feira, foram embora assim como chegaram. Quarta-feira não, se tornou personagem desta estória, como se verá a seguir. Ele é um cachorro muito esperto, gosta de correr por entre os carros, árvores, postes e pessoas que encontra pelo caminho.

Um dia, enquanto brincava de esconder ossos de galinha que havia encontrado ao lado de um carrinho de pipoca descobriu uma minhoca, que muito brava lhe disse:

- Pare com isso, cachorrinho. Eu gosto de sossego e você está me perturbando. O sol está quente e preciso me acomodar neste cantinho úmido. De noite tenho que cavar os buraquinhos na terra para torná-la mais fértil.

Quarta-Feira ficou assustado, latiu duas vezes, rodopiou, e ficou olhando desconfiado para aquele bicho comprido e mal-humorado. Buiú correu para ver o que estava acontecendo.

- Quarta-Feira, o que aconteceu? Venha, temos muito que andar. Não pense que eu posso ficar te esperando. Papai tem pressa, o sol já vai dormir e muito papel ainda está pelo caminho. O Sol está com sono.

Ele então ficou pensando. "Como pode um bichinho tão comprido e birrento morar embaixo da terra e ainda por cima trabalhar o tempo todo fazendo túneis para por os ovos e criar seus filhos. Assim logo todo o lugar fica cheio de minhocas. Elas ajudam a terra ficar boa para se plantar legumes e hortaliças". Buiú pensava enquanto andava ao lado do carrinho. "É, todo mundo contribui de alguma forma. Será que eu faço alguma coisa importante? Preciso pensar em algo para me tornar útil e assim todos reconheçam o meu esforço e inteligência".

Depois de muito andar chegaram em casa. Enquanto papai descarregava os papéis, os jornais velhos e papelão de caixas usadas, Buiú foi para seu cantinho fazer seus deveres da escola. Mamãe foi esquentar a comida para todos. Era apenas um caldo com verduras e arroz. Buiú pegou seu prato e foi comer sentado na soleira da porta. Papai entrou e em silêncio comeu um naco de pão com a sopa. Quarta-Feira, estirado ao lado do fogão de lenha observava enquanto esperava sua vez de comer. Percebeu então que mamãe raspou duas colheradas da sopa que restou na panela e meio escondendo o rosto chorava em silêncio. A noite escura e a economia de querosene fizeram com que todos fossem dormir mais cedo. Quarta-Feira lambeu algumas migalhas de pão caídas no chão e se encolheu no seu cantinho.

A noite estava estrelada.

No outro dia bem cedinho Quarta-Feira já corria no terreiro enquanto Buiú se aprontava para a escola. Papai saiu com o carrinho vazio, carregando Buiú e Quarta-Feira até a escola. O menino ia estudar e o cachorrinho ficava no portão da escola esperando por ele. Buiú sempre dava um jeito de lhe trazer um pouco da merenda. O tempo demorava a passar e Quarta-Feira ficava ansioso para voltar a correr pelas ruas atrás do carrinho que eles iam encontrar sempre que terminavam as aulas. Hoje Buiú saiu mais cedo. O sol estava lindo e a cidade muito movimentada. Buiú estava feliz e Quarta-Feira pulava alegremente. Era sexta-feira, o final da semana os deixava cheios de alegria, pois muito tempo teriam para brincar e imaginar aventuras. Também era dia do papai vender a coleta de papéis de toda a semana e quem sabe com dinheiro no bolso não ficasse mais amigo e brincalhão como era antes, quando trabalhava na fábrica.

Buiú encontrou seu pai na praça sentado no banco em frente à sorveteria. Ele achou estranho:

- Papai, o que aconteceu? Está com dor na memória? Deixa que eu empurre o carrinho. Venha meu pai, mamãe faz remédio de ervas. Você vai melhorar.

Buiú empurrava o carrinho com muito esforço. Quarta-Feira pressentindo problemas baixou as orelhas e seguia cabisbaixo seu amiguinho. O menino olhava para trás esperando pelo seu papai. Justo hoje que mamãe não acompanhava o serviço, papai tinha que passar mal.Sempre que ele entrava naquele bar saia com dor na memória, segundo dizia. - Meu filho, o homem de bem e fracassado, que perde a dignidade sofre de dor de memória. Tudo que o torna infeliz é a memória. É nela que a gente guarda tudo que a vida nos deu, e tudo que a vida nos tirou. Depois de algum tempo, quando o sonho de mãos dadas com a esperança parte numa viagem de reciclagem, sem promessa de voltar, bate o ressentimento e a gente sente pena de nós mesmos.

- Vamos para casa papai, o Chico ajuda. Nós vamos vender a produção. Mamãe vai à vendinha, ela compra lingüiça e macarrão. A gente almoça domingo depois da missa. A memória vai ficar boa. Nós vamos brincar de futebol no campinho. Seus amigos vão estar lá, vamos papai, por favor, vamos.

Seu Antonio estava realmente alterado. De repente, aquele homem que dava duro e embora catando papel nunca perdera a esperança de voltar a exercer sua profissão de ferramenteiro em indústria automotiva sentia-se desesperançado. Dois anos de espera pelo emprego que perdera, e que sabia poder exercer com competência. A família que sonhara, a mulher que amava, o filho querido e inteligente que tiveram se tornava uma carga mais pesada para sua dignidade. Tá certo, ele também não teve uma infância fácil. Mas, pôde sonhar. Seu horizonte na infância era o céu sempre sem nuvens o vento constante, a plantação de macaxeira, os pés descalços, a fumaça da lata com carvão ou gravetos que esquentava a farinha com caldo de feijão e carne salgada. No domingo lombo de jumento e tudo que a família conseguia produzir para vender na feira da cidade. Tonho corria para frente do cinema e se permitia sonhar com os heróis dos filmes americanos em que todos os brancos, ricos religiosos e proprietários, sempre corruptos, venciam. Algumas vezes, burlando o porteiro conseguia assistir o Zorro defendendo os mais pobres. E os tiros de Roy Rogers que salvando os injustiçados dos bandidos, geralmente políticos em conluio com banqueiros e fazendeiros maus.

- Buiú levou seu papai para casa. Mamãe, com um ar de cansaço e resignação, o colocou na cama. Quarta-Feira, ressabiado pegou um pé do chinelo de papai e carregou para baixo da rede. Buiú sentou aos pés da cama e com altivez comentou com sua mãe.

- Mamãe, os papeis tem que ser vendidos, vamos pegar o dinheiro para levar o papai ao postinho. O Dr. Felipe disse que podia ir a qualquer hora.

Papai tomou injeção na veia. Chorou bastante. Depois deu risada e pegou Buiu pela mão.

- Meu filho depois do almoço vamos bater uma bolinha. Vou fazer um gol para você.

Buiú ficou contente, esqueceu rapidamente de sua agonia. Almoçaram lingüiça frita com macarrão, beberam refrigerante de limão e deram risada com os pulos de Quarta-feira que com um chinelo na boca tentava ser feliz com a felicidade de seus amigos.

Buiú sentou na beirada do barranco, Quarta-Feira encostou-se às pernas do menino, esticou um olhar de sono, e dormiu ao sol. A tarde estava quente e papai corria pelo campo de terra atrás da bola, perseguindo o gol prometido. De repente um pênalti é marcado. Os jogadores discutem, Buiú se levanta grita:

- Pai, você vai bater. Bate, pai.

Papai se prepara para chutar. Buiú sente seu coração descompassado. Papai chuta. Buiu fecha os olhos. Quarta-Feira que já estava de pé diante de tanta gritaria cobre os olhos com as duas patinhas da frente.

Buiú tirou lentamente as mãos do rosto e viu seu pai caído, os outros jogadores tentando reanima-lo. Alguns gritavam desesperados, outros sentados escondiam o rosto e soluçavam. Papai havia morrido. Buiú correu para o seu lado, Quarta-Feira ficou cavando o chão sem parar como se tivesse procurando na terra a explicação para tanta tristeza. Mamãe chegou correndo e gritando. Ajoelhou-se. Muito tempo ficou fitando o rosto de seu marido. Seus pensamentos dispararam como um filme de toda a sua vida com aquele homem. Escurecia, ela levantou, pegou Buiú pela mão, andou até sua casa acendeu o lampião, esquentou o que restou do almoço, serviu seu filho, sentou-se na cama e disse:

- Seu pai marcou um gol, Buiú. A vida dele foi um gol de placa. Não se esqueça disso.

Quando amanheceu Buiú pegou o carrinho e saiu para catar papel como seu pai fazia todas as manhãs. Olhou para trás e viu mamãe abanando com um sorriso de esperança nos lábios e a certeza de que seu filho seria um homem de verdade, talvez um doutor.

Quarta-Feira sumira. Toda noite passou escondido embaixo de um monte de pneus velhos. Não sabia como se comportar perante tanta tristeza. Durante a noite as estrelas o ouviram chorando baixinho, daquele jeito que os cachorros choram quando não querem que percebam. Um vento mais frio invadiu seu abrigo. Quarta-Feira pensou em voltar para sua casa rica, mas quando viu ao longe Buiú e seu carrinho indo para o trabalho esqueceu de tudo e correu para seu amigo. Enquanto corria pensava - a vida só vale pela lealdade e amizade. Nada é mais importante que o amor.

O sol brilhava contente, o menino e seu cachorro foram desaparecendo no meio do trânsito e uma luz azul brilhante marcava o caminho que eles percorriam.

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