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CONTOS COLETIVOS

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RETALHO DE CETIM
o carnaval da família Serafim
 
 

Correndo os olhos úmidos pelas prateleiras empoeiradas de um sebo no centro da cidade, Cunha pensou que, pela primeira vez na vida, sabia o que os escritores de romances água-com-açúcar queriam dizer com "travo amargo na boca". Sua boca estava como fel, mesmo após o consumo de duas caixas de supra-sumo sabor laranja.

Após alguns minutos, finalmente encontrou o que procurava: um disco de Benito de Paula. Então as lágrimas correram soltas, enquanto lia no encarte a letra da música que não saía de sua cabeça já há alguns dias: "Mas chegou o carnaval / E ela não desfilou / Eu chorei, na avenida eu chorei / Não pensei que mentia / A cabrocha que eu tanto amei".

Pediu ao caixa que embrulhasse o disco e saiu para a claridade da rua. Era sábado de carnaval.

*****

Benito de Paula era a companhia predileta nas noites de amor com Ercília. Ela adorava o visual derrubado do artista, que conhecera nos bastidores do programa de Chacrinha, quando ainda trabalhava como dançarina, nos velhos tempos em que a TV ainda apresentava programas de qualidade.

- Ah, Ercília, como você me faz falta!

A escapada para a praia resistira poucas semanas. Ercília logo se interessara pelo Comandante James, um inglês com cara de pirata que aportara em Trancoso no meio de sua temporada de amor. Cunha percebera o interesse dela, mas, tentando bancar o moderninho, fingia não se incomodar, até incentivando-a. Falava orgulhoso:

- Deixa ele se engraçar, porque o dono da carga sou eu!, dizia rindo.

Mas, como bom pirata que se preze (James vivia do butim de iates e barcos de pesca de turistas ricos no Litoral nordestino), o Comandante atacou e levou a ex-colega de Rita Cadilac ao melhor estilo dos filmes de capa e espada.

Cunha ficara sozinho e com a conta do hotel, aos prantos.

Passado tanto tempo, ainda tinha a esperança de reencontrar a amante. E a melhor forma de aquecer seu coração com as lembranças de seu amor, era ouvir o cantor no velho LP.

- Ela é Mangueira. Vai voltar a desfilar este ano e quer que eu vá até lá, mandou até a passagem e a fantasia. Mas o gringo vai estar na cola. Como é que vou posar de paspalho oficial do ano?, perguntou-se, lembrando que os Serafins assistiriam aos desfiles na casa de Maria Regina ao lado de Dona Gertrudes, como sempre faziam. Cunha não perdera o contato com a família, apesar do incidente que levara à sua saída espetacular do casamento. Regina ainda era sua amiga e trocavam vários telefonemas. Portanto, sua volta a uma reunião familiar não era tão complicada assim...

*****

Neste meio tempo, na casa de Helena, Aline está ao telefone falando com Gegé, filha de Maria Regina.

- Gegé, você soube da Ercília? Depois daquele rolo com o seu pai, acabou se dando bem. Vai passar o carnaval dentro de um Iate, em Salvador! E o cara é um bonitão inglês! Ela está até dizendo que ele pretende se casar com ela e ir morar em alguma praia da Riviera Francesa!

- Nossa - disse Gegé -, ela tirou a sorte grande. Também, com aquele popozão, até eu!

- Pois é, isso mexeu comigo. Acho que não rola mais a gente ficar em casa com a Vó Gertrudes vendo aqueles desfiles chatíssimos. Tínhamos que arrumar outra coisa para fazer.

- Sim, mas para onde iríamos? Não temos dinheiro.

- Yesss!! - disse Aline, toda empolgada - já sei para onde vamos. Vamos nos juntar a Ercília e pular o carnaval junto com ela em Salvador! Quem sabe o inglês tenha alguns amigos bonitões!!!

- Nossa, seria muiiiito legal. A Malú está aqui do meu lado adorando a idéia!

- Pode deixar, vou ligar para o celular da Ercília agora mesmo. Gegé, convida a Malú para ir ao Shopping. Comprem as menores mini-saias que encontrarem que vamos fazer a festa!

Aline estava excitadíssima. "Que idéia espetacular", pensou ela. Abriu rapidamente a bolsa e começou a garimpar a agenda. Acabou encontrando-a abaixo da escova de cabelo e do porta-maquiagem. Fez uma anotação mental para comprar outra bolsa; aquela já estava velha, já tinha mais que dois meses e estava saindo de moda.

- "E", "e", "e", cadê a maldita letra "E" - falou enquanto folheava a agenda.

- Achei! 9555-5555.

Pendurou a bolsa no ombro, colocou os óculos de sol italianos e saiu para a poeira do dia, em direção à casa de Regina. Assim que chegou, sacou da bolsa o celular com capinha de pelúcia e ligou para Ercília.

- Alô, tia Ci?

- Aline? Pára com este negócio de tia, cara, tá me chamando de velha?

- Tia Ci, não tô ouvindo nada ? Aline gritava no telefone. Do outro lado uma batucada infernal, gritos, gemidos. "Cara!...ela deve estar bem no meio do trio elétrico!..." pensou excitada.

- Fala mais alto que eu não tô ouvindo...! A outra berrava do outro lado.

- Você está no Filhos de Ghandi? Aline gritou fazendo vibrar o lustre importado de Maria Regina, que veio ver o que estava acontecendo com a sobrinha.

- Não, cara, eu tô na Mangueira. No ensaio... esgoelou-se a Ercília.

- Ué. Você não estava em Salvador? Novos gritos, novos balanços do lustre.

- Pois é.. O Jájá, ele quis conhecer a Manga... a gente deixou o barquinho dele lá na Bahia e veio conferir a verde e rosa... Arrumamos uma ala pra desfilar no domingo com a Maria Augusta... Ala dos "Tô com Dengue e Não Abro"...

- Ala do quê?... Cê tá no Rio mesmo?... Vai desfilar na Mangueira? Que massa!

- Tô tendo uma idéia genial!... Porque você e as meninas não vem para cá e saem também junto com a gente? Ainda tem umas fantasias pra vender ... a Augusta é gente boa, dá um jeitinho.. Tem também o Alfredo, aquele amigo do tio Nestor, ele conhece todo mundo na escola, toca tamborim na bateria.... Vai ser o máximo!!!...

Aline deixa cair o celular e sai gritando e sambando pela sala, fazendo coreografia de chacrete com Gegé e Malú.

- Tia... Vamos pro Rio!... Desfilar na Mangueira!!! ... A tia Ci, o Alfredo, o Jájá que deve ser o tal gringo... tá todo mundo lá!...

Regina não acredita:

- Que história é essa de ir pro Rio? E desfilar na Mangueira? Com aquelas tangas indecentes, no meio daquele bando de piranhas?

- Ai, tia.. deixa de ser careta, pô!...

Maria Regina toma o celular da mão da sobrinha:

- Ercília?...

- Oi, Rê, vem desfilar também...

- Eu?...

- Traz o Raul, aquele pedaço de mau-caminho...

Maria Regina sente um calor que sobe pelas pernas.

- Sabe quem vai desfilar também conosco?... O Cunha?.. Alô... Alô?...

-Vó Gertrudes!... Maria!... acode que a titia tá tendo um troço...

Ainda se recuperando das festas de final de ano, Dona Gertrudes ignorava a data festiva próxima e o trabalho que teria novamente, recebendo os familiares, cozinhando canja e recolhendo confetes espalhados pela casa.

- O que aconteceu Regina? que cara é essa? Acudiu a velha, com um copo de água com açúcar na mão.

- Aquela doida da Ercília mãe, acredita que me convidou pra desfilar na Mangueira com ela, o gringo, o Raul e o Cunha?

- Carnaval tão cedo assim, mas não é só no final de fevereiro? - perguntou à filha.

- Este ano adiantaram, mas é bom porque vou pagar promessa na quaresma, e quanto mais cedo chegar a Páscoa, melhor - respondeu Regina, decidida a parar de comer bolachas recheadas de chocolate. Queria esquecer de vez o fantasma do Cunha, que ainda a atormentava e ela não conseguia deixar de fingir uma amizade falsa, não demonstrando a raiva sentida.

Dona Gertrudes fingiu nem escutar. Encontrava-se num estado de profunda indiferença com tudo e com todos, que na verdade era um desinteresse pela vida. Sentia cada vez mais saudades de Arnaldo e as lembranças afloradas dos antigos carnavais levaram-na às caixas de camisa cheias de fotos empoeiradas.

As fotos em preto e branco já cinza, desbotadas, com acabamento caprichado nas bordas, se transformavam em imagens coloridas, quentes, embaladas por marchinhas inocentes.

- Pierrô e Colombina, carnaval de 56, Nêga Maluca e Sambista Preto, esta, se não me engano foi em 59. Começou a se divertir tentando reconhecer os rostos por trás da maquiagem feita com rolha queimada, batom vermelho e peruca de bombril, todo mundo igual, com beiço largo e olho arregalado.

- Tanta gente aqui já se foi, e quem ficou, só tá o pó da gaita.

Surpreendeu-se falando uma das expressões mais usadas pelo Arnaldo. Sentiu-se como o pó de uma gaita velha, desafinada, de notas fracas.

Uma foto com anotação no verso lhe chamou a atenção. "Para o casal mais animado do salão". Virou devagar inspirando um ar que lhe faltava. Sentiu um leve aroma de lança-perfume quando na imagem, viu o Arnaldo vestido de bebê, só de touca, fralda e babador, com uma mamadeira de uísque na boca, e um tubo prateado na mão. O carrinho de bebê era ela, vestida de babá, que empurrava no salão.

- Ele espirrava na perna das moças!. Riu-se ela, acendendo o abajur na sala que filtrava uma luz alaranjada pela cortina. A globeleza sambava na televisão ligada. Sentiu um calafrio roçar-lhe a espinha, como um jato gelado do perfume. Fechou os olhos e as mãos dançaram na caixa, aleatoriamente procurando uma lembrança. Uma textura diferente enroscou-lhe os dedos. Era uma lantejoula, bordada num retalho de cetim...

- Gertrudes! Gertrudes!

Era Nestor quem acabava de entrar e tentava trazê-la de volta à realidade. Curioso, lançou um olhar sobre as fotos espalhadas no seu colo. Não conseguiu conter um sorriso ao reconhecer a dedicatória que ele inserira no verso da foto tirada de Gertrudes e Arnaldo. Sentiu saudades do falecido irmão e dos velhos carnavais em que sempre lhe renderam grandes aventuras e, quiçá, alguns filhos. Dois, pelo menos, com certeza!

Contou então à Gertrudes, que acabara de ouvir um papo sobre a família ir para o Rio, na espectativa de desfilar na Mangueira. Falou sobre a vontade de estar com Cássio, Arnaldinho e Xaninha e, quem sabe, reviver aqueles bons momentos da mocidade. Não escondeu sua vontade de juntar-se aos mais jovens e aventurar-se na Avenida. Enquanto falava, parecia ouvir aquela bateria que agitava e que nunca deixara de ser o seu maior estimulante às grandes aventuras.

Sentindo-se meio envergonhado com os pensamentos que acabara de ter, lembrou mais uma vez de Cássio, dos netos e, claro, de Alfredo! Mas, imediatamente, voltou a ouvir o batuque e seus olhos sonharam com o rebolado que embeleza a Escola.

E, sem pestanejar, decidiu! Iria também ao Rio, no mínimo para ver a sua Mangueira desfilar e, quem sabe, para conquistar o coração de mais alguma passista, já que não se sentia tão velho assim e o sangue ainda batucava nas suas veias!

*****

Não foi difícil convencer Maria Regina a viajar para o Rio de Janeiro. A estratégia de Nestor foi a mais óbvia possível: ele acionou o Raul, que imediatamente concordou e, por telefone mesmo, com meia dúzia de promessas doces e declarações de afeto, convenceu Regina de que iria ser maravilhoso ver a Mangueira entrar em pleno Rio de Janeiro.

Regina parecia ter visto passarinho verde. Seu estado de espírito mudou a ponto de parecer mais animada até do que Aline com a idéia da viagem. E quando Regina queria, Regina fazia e a família toda ia no embalo. Agora era só combinar os detalhes da viagem.

Maria Helena ficaria, pois não tinha peito suficiente para encarar a Marquês de Sapucaí com os gêmeos (criaturas infernais, segundo tio Nestor) e a bebê. Dona Gertrudes concordou sem muita demora, mas havia um pequeno problema: ela não existia sem suas lembranças, como um general não se reconhece sem as medalhas. Tal particularidade tornava-se incômoda quando as memórias são compostas por duzentos quilos de fotografias e documentos, cuidadosamente calafetados em malas metálicas.

- Não posso ir sem isso - dizia ela, lacrimejando.

- Mas poderia pelo menos fazer uma pré-seleção - sugeriu Nestor.

- Pensei nisso, mas... não consigo encontrar as chaves.

Naquela noite, Rafael, um dos gêmeos, passou mal do estômago, comera algo pesado, que tilintava quando ele soluçava. O tema do jantar foi uma estratégia para levar dona Gertrudes e suas memórias.

- Não dá para levar tudo aquilo no avião - Aline lembrou - Vão pensar que é guerra bacteriológica!

Foi o Nestor que salvou a parada:

- E se Gertrudes fosse com o Cunha?

Um silêncio mastigou a mesa. Rafael tilintou um soluço. Todos estavam com medo de ir com o Cunha, temerosos de perder a carona, caso o tal capitão James resolvesse matá-lo, já que iam sair na mesma escola de samba.

- Não vejo opção melhor - Maria Regina, doce como mel, aceitou - creio que não vai haver nenhuma rusga entre o Cunha e o tal inglês, que é forte, mas tem um probleminha na mão.

- Ele é maneta - resumiu Aline - e usa uma prótese.

- É isso - lembrou Maria Regina - O Cunha nunca enfrentaria um aleijado, mesmo sendo um tenente.

- Não é um tenente - corrigiu o Nestor - é capitão. Capitão James Gancho.

- Esses gringos têm cada nome - riu-se Maria Regina.

*****

Enquanto não chegava a hora da Manga brilhar na Avenida, a turma se espremia nas arquibancadas, que predispunham ao mau-humor e ao roçar de corpos. Entalada dentro de um micro-short de cetim preto que realçava sua portentosa bunda, Domitila acompanhava sem entusiasmo o desfile da Caprichosos de Pilares. Ao ver o inglês se aproximando dela com os olhos fixos no tal shortinho, Tio Nestor encaixou a dentadura com uma mastigada mais firme, cutucou Vó Gertrudes e sussurrou: - Fica de olho no Cássio!

Domitila sentiu um corpo se encostando no seu. Ia partir pra ignorância, quando a voz dele ribombou na sua nuca:

- Domitila, I presume! - com o rabo do olho Domitila viu um copo plástico de cerveja encaixado no gancho niquelado.

Virou a cabeça:

- Captain! How are yo...

- Eu falarr porrtuguês e estarr doidinho prra te conhecerr, Domi.

Falava e se mexia em ritmo mais lento que o do samba que passava. Domitila arrebitou mais o traseiro e perguntou, maliciosa:

- Que fantasia é essa, James? Ele entrou no clima:

- Pirrata da perna de pau! Domitila acariciou o gancho reluzente e intuiu, corando:

- Esta é a única prótese que você tem, né?

- Sim, querrida. O resto serr meu mesmo e estarr a seu disposiçón! Subitamente animada, quase à beira da euforia, Domitila ergueu os dois braços e atravessou o samba:

- Hoje, eu não quero sofrer / Hoje eu não quero chorar...

Vó Gertrudes enxugava o pescoço com um lenço, e disfarçadamente vigiava os movimentos de Cássio, que não tirava os olhos do decote da Aline, e cantava baixinho:

- Minha sobrinha predileta, te carreguei no colo, cantei pra te dormir...

*****

O gringo já tinha sumido da arquibancada, levado para a concentração por Ercília. Uma preocupação a menos, mas ainda assim a velha Gertrudes estava inconformada. Onde já se viu um tio olhar com aquela malícia para uma sobrinha adolescente? Se ao menos o Cunha tivesse vindo... Era também pai de duas adolescentes, entenderia tudo e tomaria conta da Aline, que era uma maluquinha sem freio, mas que gostava do tio Cunha.

Tudo saíra errado. O homem fizera birra e fora até mal educado quando Nestor ligara para perguntar se ele poderia levar "a mala da Gertrudes" (ela ainda estava pensando se isso tinha sido uma brincadeira de mal gosto do cunhado). O Cunha tinha dito que "NÃO IRIA e que se fosse NÃO LEVARIA A VELHA. Que ele estava cansado daquela família. Que ninguém tinha a mínima consideração por ele. Que ele tinha engolido o caso da Regina com o Raul. Que tinha sido passado para trás com toda a pompa e circunstância pela Ercília. E que fossem todos para o inferno". E desligara o telefone, sem dizer sequer "até logo". Gertrudes viera de ônibus, com sua matula e as lembranças guardadas em quase um século de existência.

De certa maneira, Gertrudes estava quase que contente com a posição de Cunha. Será que finalmente o homem deixaria de ser um "morno"?

Enquanto Cássio ainda babava com o mini-mini-top da menina, a maravilhosa Mangueira iniciava seu desfile triunfal. A platéia delirava. Até a velha Gertrudes sentiu um arrepio percorrendo a espinha, o que a fez lembrar-se do toque dos dedos de Arnaldo em sua cintura nos velhos carnavais. Um riso tonto brincava na boca murcha de Gertrudes em plena arquibancada. Maria Regina tinha a quem puxar.

*****

No meio da avenida, seminua, suada, com o corpo coberto de purpurina para aumentar ainda mais o seu brilho próprio, Ercília cantava, sambava e procurava na arquibancada a presença de alguém muito especial para ela: o Cunha. "Será que ele veio?". Sabia que tinha sido afoita ao trocá-lo pelo maneta, que além de tudo era abusado e não fizera a menor questão de disfarçar o quanto ficara encantado com as carnes generosas de Domitila.

O desfile prosseguia e agora da boca de Ercília já não saíam mais as palavras do samba enredo. Ela repetia baixinho e sem parar: "Apareça, meu amor. Vem buscar tua cabrocha "

Atrás dela, James pulava sem nenhuma cadência ou ritmo. A bem da verdade, ele nem cogitou a hipótese de que seus remelexos pudessem acompanhar os piques e repeniques da bateria, pois sua intenção era apenas encoxar o traseiro de Ercília. No princípio ela gostara e incentivara os exageros do gringo, mas depois foi cansando e já estava que não o agüentava mais babando em seu cangote purpurinado. E se o Cunha estivesse por perto, olhando? E se ele já tivesse presenciado a cena? Ercília, numa raiva inconsciente, aproveitou que o maneta abusado a encoxava e, como se fizesse parte da evolução, deixou o calcanhar subir para acertar suas partes baixas. Instintivamente ele se dobrou. A cabeça veio abaixo e o traseiro subiu. Parecia que finalmente o inglês entrara no ritmo, mas a dor fez com que ele perdesse o passo novamente e desabasse em plena avenida. Tentou amparar a queda com o braço e sua prótese bateu no asfalto e saltou longe. Uma passista em evolução chutou o gancho que reluziu no ar feito um adereço carnavalesco e sumiu no meio do povo. Com o rosto vermelho e acenando um braço cotoco, o James bufava por socorro. Ercília achou que tinha exagerado e tentou ajudá-lo, mas já era tarde. Um mau jeito havia distendido o nervo ciático e o pobre não conseguia se pôr no prumo. O socorro veio na forma de dois crioulos tamanho extra-grande que levaram o torto para a dispersão, onde havia uma ambulância.

Da arquibancada, uma já assanhada Gertrudes acompanhou a Ercília voltando sozinha para a avenida. Pareceu que ela procurava alguém no meio do público e então a velha acenou, tentando se fazer enxergar. Ercília pareceu não ver os acenos e se perdeu na multidão. Quando a matriarca se convenceu que não fora avistada e virou-se buscando cuidar a neta, Aline havia desaparecido. A merda é que Cássio também não estava mais ali...

- Danem-se todos! Vou é aproveitar, que esse bem pode ser meu último carnaval na avenida e na vida! - falou tão alto que quase se desculpou com os vizinhos da platéia.

- Falando sozinha, dona Gertrudes?

*****

Ao reconhecer a voz do Cunha, a velha estremeceu e pareceu encolher.

- A Aline... faz tempo que sumiu. Disse que ia ali e já voltava! - disparou Gertrudes atropelando o samba e a educação.

- Ela está aqui? Achei que fosse sair na ala das crianças com as primas. Desculpe ter sido um tanto estúpido ao telefone, são os remédios, a senhora entende. Não fiquei bem depois que a danada da Ercília me deixou. Aliás, ela veio?

Aliviada , a velha apontou pra moça que seguia rumo a dispersão:

- Parece que ela estava procurando alguém... - E viu um Cunha sorridente se meter na multidão que impedia o caminho.

*****

Debaixo da arquibancada, a mão trêmula de Cássio parecia não querer soltar-se da cintura da sobrinha.

- Pena que acabou o guaraná, né tio? Tô com uma sede... - Aline se abanava com um leque promocional, de uma cerveja que a idade dela não permitia consumir.

Ele concordava com a cabeça, tonto pelo ritmo da bateria e o redemoinho de idéias que lhe ocorriam. Será que ela estava fazendo tipo ou não tinha entendido mesmo? Ele ficava doido cada vez que ela chegava perto pra dizer alguma coisa próximo ao seu ouvido, já que não se ouvia nada naquele pandemônio carnavalesco. Aquele pescocinho perfeito. Uma pele lisinha, viçosa que nem um pêssego. Não. Aline era uma manga no ponto. E ele estava quase mordendo a manga quando ouviu uma voz desconhecida, mas agradável:

- Será que você pode me ajudar?

Esqueceu-se imediatamente da manga quando olhou pra moça que estava ao seu lado.Não era uma fruta, era todo um manguezal. Quase mais alta do que ele, de top estiloso, mínimo, feito com fuxicos coloridos e usava uma sainha - por Momo, que sainha! - que só cobria o necessário pra que ela não fosse presa por desfilar a genitália desnuda.

- Eu perdi a minha lente, será que você não pode me ajudar a procurar?

Ele pegou Aline pelo pulso e correu até o mais próximo possível de dona Gertrudes, sem que ela o visse. Deixou a menina lá com cara de quem não tinha entendido nada e voltou quase voando. Grudou na moça, que o levou pro canto mais escuro, se é que havia um canto escuro desocupado. Inebriado de cerveja e caipirinha, Cássio foi ajudar a moça a encontrar o acessório.

*****

Maria Regina não conseguia parar de chorar. Encostada perto da entrada do Sambódromo, com o penacho verde e rosa na cabeça, ela chorava inconformada com o desaparecimento de Raul. Eles haviam combinado se encontrar naquela manhã, porque ele tinha muito serviço no escritório e não pode viajar com eles, na véspera. Nada. Não chegou, não ligou e o maldito celular só dava caixa postal. Foi pra Avenida na esperança de que ele tivesse ido direto pra lá. Ilusão. Nem quis desfilar. Ela devia ter desconfiado daquelas desculpas esfarrapadas que ele andava inventando, depois que a nova assistente, loira falsa e siliconada, tinha começado.

- Oh, Jardineira, por que estais tão triste? Mas o que foi que te aconteceu?

- Eu não sou Jardineira... Sou, ou era, destaque. "A Ascensão e a Queda da Dinastia de Cassandro O Forte No Contexto de Zumbi", no segundo carro - respondeu, limpando o nariz com o véu preso no punho, enquanto erguia a cabeça e olhava pro belo espécie masculino a sua frente. Usava um chapéu esquisito, um elmo, com uma pluma branca caindo pelas costas, um colete e uma saia - estranhou o homem de saia, mas as pernas eram de jogador de futebol, valiam o esforço – metálicos. E polainas que queriam parecer botas.

- O que você está fazendo aqui, desistiu de desfilar também?

- Digamos que a vida tenha seus meios, princesa. Perdi o ônibus, mas já vi que o destino queria que eu te encontrasse. Laerte, um seu criado – falou em carioquês perfeito, fazendo uma reverência ridícula, que ela adorou - vamos tomar alguma coisa, meu bem?

E Maria Regina saiu de braço dado com o Gladiador.

*****

Domitila bufava de ódio. Primeiro a Ercília tinha levado o Capitão pra Avenida bem no meio de seu idílio pornô-amoroso. Justo na hora em que ela estava gostando da idéia do gancho do homem. Agora que a Manga já tinha desfilado, dona Gertrudes tinha colocado a Aline sob sua custódia. "Olha a menina, heim, fica na sua responsabilidade, heim. E cuidado com essa roupa indecente que você vestiu. Se seu marido te vê de esfrega com esses marmanjos....". A-ha. Ela nem imaginava que o Cássio e ela estavam numa briguinha que já durava uma semana. Ele devia estar subindo pelas paredes por conta da greve de sexo que ela tinha estabelecido. Se bem que ela também já estava com os hormônios à flor-da-pele. E agora ela tinha virado babá da Aline. Justo ela que já foi passista! A menina não estava nem aí pro carnaval, já tinha dito que só pensava no Cecéu, um ficante dela, lá da escola. Segundo Gegé e Malú, que já tinham voltado para a arquibancada com suas fantasias de "Sorvete de Morango e Pistache Enquanto Manifestação da Idiossincrasia da Cultura Carioca Frente à Miscigenação" e agora confabulavam com Aline, o menino era mesmo lindo, por isso a paixonite da garota. Hum, a oportunidade perfeita para a fuga... As três meninas não iriam sair dali e ela podia dar uma voltinha, já que dona Gertrudes estava sentada um pouco mais ao lado e pela cara meio abobada, que aliás ela já mantinha há meia hora, nem ia notar sua ausência.

Foi sambando e sorrindo, fugindo - mas não muito - dos apertões até a escada e sentiu uma mão forte tocar seu ombro.

- Não é uma grande coincidência nos encontrarmos nessa multidão? É um prazer te ver, Domitila. Sempre linda!

- Alfredo! - os olhos de Domitila cintilaram.

*****

Na balbúrdia da saída da dispersão, Cássio deu um encontrão em Ercíla, que já não tinha uma lantejoula no lugar, de tão suada.

- Credo, Cássio! Que pressa é essa! Você nem desfilou, o que é que tá fazendo aqui?

- Tô saindo! Tô indo! Avisa pro resto do povo que eu já fui! - E saiu, parecendo nervoso.

Ercília não entendeu nada e continuou andando, quando foi abordada pela moça que parecia estar seguindo Cássio.

- Você conhece aquele bofe?

- Bofe, o Cássio? - deu um sorrisinho cúmplice - conheço, sim.

- Entrega isso aqui pra ele. Tadinho, ficou tão estressado de repente...

- Pode deixar - e leu o cartão que a moça lhe entregou. "Ricardo Luance - Haute Coiffeur".

Não conseguiu prender a gargalhada, amassando o cartão e jogando na sarjeta.

- Tsc, tsc, tsc. Sempre jogando as coisas fora... - ela ouviu a voz familiar do Cunha e se virou como nos filmes da tv.

- Cutchuco, você veio!

- E eu vivo sem você, minha cabrocha?

Foram vistos saindo juntos da Marquês de Sapucaí.

*****

Arnaldo e Gertrudes brincavam ao som das marchinhas. A máscara deixava a mostra o belo sorriso dela e ele sussurrava vez ou outra no seu ouvido:

- Não existe jóia maior que eu possa lhe dar, meu amor. Já carregas nos lábios o mais belo marfim...

E ela enrubescia e se encolhia, num misto de amor e ansiedade. Um arrepio indecente subia por seu corpo quando ele espirrava o líquido perfumado e gelado em suas pernas.

- Arnaldo!.. - e sorria, só sorria.

- Hoje pode tudo, minha Trude, tudo!

E o Pierrô rodopiava com a Colombina por todo o salão...

- Desde quando ela está assim?

- Não sei exatamente, Doutor. Estávamos assistindo o desfile, ela parecia estar bem. Depois percebi que ela não mudava de posição e estava com os olhos perdidos, esse sorriso fixo. Fiquei desesperado e dei um jeito de traze-la pra cá. É grave?

- Me parece um transe hipnótico, só não sabemos o que o causou. Ela precisa ser levada para um hospital para que possamos fazer alguns exames e descobrir o que está acontecendo. Vou chamar a Unidade Móvel.

Enquanto aguardava na porta do ambulatório, Tio Nestor não conseguia ainda entender o que estava acontecendo. Fora as três meninas, todos os outros haviam sumido e Vovó Gertrudes tinha ficado daquele jeito. Será que tinha cura? Será que ela iria acordar logo?

Foi quando os pára-médicos passaram, levando a velhinha, ainda sorrindo, para o automóvel que a levaria ao hospital.

- Posso ir junto?

- Claro senhor, pode subir.

- O que vocês acham, ela vai ficar boa?

- Claro que vai, não se preocupe. É Carnaval. Tudo é possível no Carnaval...