TRAZ A PESSOA AMADA
Paffomiloff

Jorge de Ogum ajeitou o turbante e espalhou os búzios sobre a peneira.

Zuleika, sua secretária, mulher perspicaz, era responsável pela pré-avaliação dos clientes. Por um orifício atrás da placa "traz a pessoa amada em menos de três dias" ela podia fazer seu prognóstico, facilitando o trabalho do patrão:

- Mulher, largada pelo marido (na certa). Dois filhos (no mínimo), barriga e seios caídos, nunca teve um caso (aposto) - avaliava Zuleika.

A cliente entrava, Jorge lançava um olhar profundo e uma frase cifrada:

- É uma pena que a árvore que deu frutos corra o risco de cair - disse. E a tal mulher começou a chorar copiosamente. "Na mosca, Zuleika, na mosca".

O negócio era rendoso, os clientes insatisfeitos não costumavam voltar e os satisfeitos indicavam o nome de Jorge de Ogum.

O único problema era o concorrente do outro lado da rua. Um certo Luiz Exu Cata-piolho, que dizia, com seus trejeitos adamados, poder trazer a pessoa amada em menos de dois dias.

Uma tarde, porém, quando a campainha tocou, Zuleika olhou pelo buraquinho do letreiro e estremeceu. Chegou apavorada para Jorge:

- Sebastião (Tião-coisa-ruim), vinte e três anos (incompletos), solteiro (eu acho), chefe do tráfico do morro do alemão (com certeza) e eu vou me esconder no armário.

O vidente empalideceu. Poucos segundos depois, entra um mulato alto e musculoso, ostentando quilos de ouro, nos braços e no pescoço, acompanhado por dois armários ambulantes, cheios de tatuagens e armas.

Tião sentou-se na cadeirinha e encarou Jorge, que concluiu imediatamente: "Estou morto".

Foi quando o traficante desatou a chorar como uma criança. As lágrimas só não chegavam à boca porque eram desviadas por uma cicatriz de navalha, que as conduzia até um buraco de bala no ombro, onde ficavam represadas.

- Minha nêga me deixou - soluçava o traficante.

Juntando uns cacos de presença de espírito, Jorge de Ogum resolveu fazer o truque do cavalo e tentou fingir que estava recebendo um santo, mas percebeu que, antes do terceiro espasmo, os dois seguranças já estavam engatilhando as armas. Para não dar bandeira, o vidente abrandou e resolveu mudar para "cover" de Preto Velho.

- Eh, eh. Mizifi tá na pior. Qui qui nego véio pode fazê por vosmicê?

- Eu posso ter todas as mulheres da favela, meu pai - chorava o traficante - mas só quero a minha nêga.

Jorge percebeu que aquele era o tipo de cliente insatisfeito que volta. Armou uma estratégia de improviso:

- Eh, eh! Isso foi trabalho pesado.

- Fizeram trabalho para roubar minha nêga?

- Fizero trabalho dos pesado. Vosmicê vai ter de fazer ebó.

- Me diz, que eu faço.

- Vosmicê vai tê de fazê sacrifício humano! Mizifi faz?

Os seguranças olharam desconfiadíssimos para Jorge de Ogum.

- Posso matar qualquer um, meu pai?

- Nada disso! Mizifi vai tê de chegá naquela encruzilhada lá fora, à meia-noite. Oferecê bebida pro povo das rua, uma farofa e... vai tê de matá o Luis Exu Cata-piolho, do escritório lá da frente. Tudo isso meia noite em ponto.

Zuleika tremeu. Suava tanto que tinha medo de se afogar dentro do armário. Jorge não era um mau chefe, dava trinta por cento dos lucros para ela e nunca avançou o sinal.

- Tá bom, nego véio! - o traficante bateu no peito - esse tal de Luiz vai morrer hoje à meia noite.

Os marginais deixaram o recinto. Zuleika contou até cem, antes de sair do armário.

O vidente tremia tanto que parecia realmente estar recebendo um santo. Seus olhos haviam afundado nas órbitas e demorou um tempo até perceber a presença de Zuleika, que pensava apenas:

"Jorge de Carvalho (de Ogum), trinta e dois anos (completos), solteiro (suponho). Acaba de planejar um assassinato".

* * *

- Chefe - implorava um dos seguranças de Tião-coisa-ruim - deixa eu matar essa bichinha agora.

Faltavam poucos minutos para a meia noite e o tal do Luiz Exu Cata-piolho fizera tamanho estardalhaço, quando o capturaram, que precisaram amordaçá-lo com "silver tape" e amarrá-lo como um queijo provolone.

- Só na meia noite, Gelli - sentenciou Tião.

- Chefe, acho que o tal Jorge de Ogum está nos observando - disse o outro capanga - a luz do consultório está ligada.

- Tanto faz, Duplex. Essa noite faço o ebó e minha nega volta pra mim, em menos de três dias.

O sorriso de Tião só não avançou mais, pois ficou preso num estilhaço de granada que se alojara num músculo da face direita. Os homens não discutiram, muito menos o Gelli, que era da Igreja Universal.

Neste momento, um jorro de luz inundou a encruzilhada. O som inconfundível da sirene da polícia despertou a noite.

- Teje preso! - gritou o policial - Mãos na cabeça!

Tião agarrou Luiz, para tentar usá-lo como refém, mas não adiantou. Exú Cata-piolho foi o primeiro a ser morto pela polícia e a bala ainda acertou o traficante no rim direito, o que não impediu o criminoso de rolar para uma transversal.

Gelli, que não tirava a mão do bolso e Duplex começaram a cuspir fogo. Seus tiros trespassavam com facilidade a lataria do carro da polícia, espalhando gasolina no chão, mas só conseguiram acertar um dos policiais. O outro alvejou Duplex no peito, poucos segundos antes da viatura explodir, iluminando a encruzilhada e arrancando o braço esquerdo de Gelli, que ainda segurava a pequena Bíblia amarfanhada.

Tião aproveitou os momentos que antecediam a chegada da outra patrulhinha e alcançou a casa do vidente, cuja porta destrancou a tiros e galgou o lance de escada até a sala de Jorge de Ogum, que o esperava.

- Olha aqui! Tu chamou a polícia! - O marginal espumava sangue. A bala tivera sua velocidade reduzida pelo corpo do Luiz Exu Cata-piolho, por isso penetrara sem grande força no corpo de Tião, esfriara em seu sangue e já estava começando a se mover, aproveitando a frenética atividade nas veias.

Jorge não se deu ao trabalho de ter espasmos, falar engraçado ou implorar por sua vida, mesmo face ao rosto cilíndrico da morte.

- Tião - a voz macia vinha de trás - estou aqui.

O marginal olhou para o lado do armário. Seu braço armado pendeu, enquanto os joelhos cediam. A bala errante havia conseguido carona numa artéria expressa, que a conduzira ao coração.

Os olhos de Tião turvaram e sua boca exarou alguma coisa carinhosa.

As correntes de ouro espalharam-se no chão.

Zuleika não chorava, apenas estava rindo da ironia: Jorge de Ogum, afinal, a trouxera diante de Tião em menos, bem menos de um dia.

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