A CURA
Nato Borges

- Pense que você é um ser de luz...

Pensava. E quanto mais pensava, tanto mais concluía que aquela figura na sua frente era irreal. Não podia ser humano, ou viver na Terra um ser que pensasse e agisse daquela forma. Terapeuta holístico. Até a profissão era algo amorfo, meio sem sentido.

Estava ali por causa da mulher. Ela o havia convencido de que precisava se tratar. Problemas de relacionamento, mau humor crônico. O tal terapeuta havia sido indicado por uma amiga que ela conheceu nas aulas de yoga. Bando de loucos. Já tinham se passado seis meses e, apesar dos "progressos" apontados pelo extraterrestre, ainda sentia-se o mesmo.

- Você precisa externar seus sentimentos, encontrar-se consigo em seus mais profundos esconderijos...

- Mas...

- Não lute contra sua força interior. Pense em você, em sua família...

Pensava. Da mulher não trazia mais imagens. Quase trinta e cinco anos de casamento. Muito tempo. Um tempo em que as qualidades já haviam se transformado em obrigações que não mereciam mais elogios ou comentários. Os defeitos. Esses cresciam, tomavam proporções monstruosas, provocavam reações intempestivas e cada dia mais inesperadas. Mas continuavam os mesmos desde sempre. Talvez menor fosse a tolerância.

Havia também o fato de não serem mais os melhores amigos um do outro. Ah, isso aconteceu um dia. Cumplicidade. Eram os dois contra todos. Com o tempo, "todos" acabaram se mostrando mais amigos, mais ouvintes, mais iguais. Os segredos - nem tão secretos ou impublicáveis - empilhavam-se em suas mentes. Não havia mais o que dividir além do "bom dia" ou "boa noite".

Dos filhos não tinha orgulho. A mais velha, com todos aqueles modernismos defendidos pela mãe, era para ele uma vadia. Com pouco mais de trinta anos, trabalhava, sim, mas para nada. Ou melhor, para nunca. Não fazia planos, não lhe dava netos, não lhe dava sossego. Sonhava com o dia em que ela decidisse viver sozinha, levando para longe toda aquela liberdade construída às suas custas. Suas custas, sim, pois ela só flanava graças à casa, às roupas limpas, à comida feita e a tudo o mais que lhe dava abrigo.

O filho mais novo fazia menos ainda. Largara os estudos e recusava-se a ser menos que um cantor de sucesso. Esta opção foi um dos fatores a adiar sua aposentadoria. Não se imaginava em casa convivendo com a fauna que a cercava e que por ali passava boa parte do dia.

- Viu como você está mais relaxado? Agora pense em tudo o que você construiu, no seu trabalho...

Pensava. Construir mesmo, quase nada. Fez o que achava ser sua obrigação. Uma casa, um carro para cada um com as respectivas trocas anuais. Aos olhos da maioria deveria ser feliz. Tinha muito mais que muita gente, diziam. Mas o que lhe doía eram os sonhos. As promessas feitas na juventude e esquecidas. A casa não era o que, nem estava onde sempre quis. O estilo de vida também não era o que sempre admirou.

Tinha consciência que seus sonhos tinham se cristalizado, e sólidos tomavam a forma de inveja. E o trabalho? Ali era medíocre. Chegou a um posto de gerência com relativa facilidade, e ali se manteve com o mesmo esforço. Sempre almejou mais, e algumas vezes até tropeçou em uma ou outra oportunidade. Mas além de medíocre, era covarde, e sabia disso.

- Posso sentir suas vibrações. Hoje evoluímos, andamos mais um pouco em direção à luz...

- Não acho...

- Esse é o seu problema. Se abra para o mundo, tenha simpatia por si mesmo..

Talvez tivesse. Simpatia era para ele um conceito dúbio. Se achava simpático, pelo menos consigo mesmo. Sempre concordou com suas próprias teorias, nunca se imaginou errado. Cercava-se de pessoas que agiam e pensavam como ele, e isso lhe parecia simpático. Sabia que muita gente não pensava o mesmo, mas até se divertia com isso.

- Isso! Sorria, continue sorrindo... você está no caminho, posso ver pela sua aura. Ela começa a brilhar, enfim. Agora você está pronto! Pense no real motivo de sua presença aqui...

Pensou. Pela primeira vez pensou nisso. Sugestão da mulher e, numa tentativa de reencontrar o elo perdido, havia aceitado a idéia. Tinha sido simpático e agora via-se ali, de frente com o ser.

Também pela primeira vez encarou o tal terapeuta, e se deu conta de que não sabia seu nome. Pior que isso, enfim percebeu que a figura era um pavão, cheio de trejeitos e maneiras. Odiava aquilo, sempre odiara. Não mortalmente, mas queria distância, nunca sentiu-se bem perto de gente daquele tipo. Teve tempo de analisar friamente aquela situação, e decidiu ser simpático consigo na primeira oportunidade.

- Viu só. Vejo pela sua expressão que você está em outra dimensão. Seus sentimentos estão prontos. Diga agora o que você sente! Ponha para fora!!!

- Doutor....

Respirou fundo e encheu os pulmões:

- VÁ À MERDA!!!!!!

Bateu a porta e foi para a rua. Respirou fundo, e foi para casa com a certeza de que estava curado.

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