SINAIS
INVISÍVEIS
Míriam Salles
Dina pegou a pequena flor amarela que começou a despetalar enquanto murmurava: bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer. O sorriso brotou espontâneo em sua boca. Ele a queria!
Olhou mais uma vez o horizonte, o mar espelhado, as nuvens azuladas da manhã que nascia. Pegou os remos de dentro da canoa, a fieira de peixes que buscara no cerco e se encaminhou para a casa. Era uma casa pequenina, de pau-a-pique, que resistia ao tempo graças às inúmeras camadas de reboque de cimento. às vezes apodrecia um dos troncos e era necessário reforçar a estrutura. Como toda caiçara, Dina sabia que qualquer parede só servia mesmo para resguardar contra o vento. Nenhuma parede do mundo a protegeria contra os maus pensamentos.
Depositou os peixes no tabuleiro que servia de tanque onde corria água sem parar e começou a limpá-los. Enquanto lidava com o sangue frio das cavalas e tainhas que trouxera para vender aos campistas, seu próprio sangue esquentava ao lembrar do rosto daquele por quem se apaixonara perdidamente. Olhava as entranhas e via sinais. O sangue escuro era sinal de que o futuro era incerto. As ovas prometiam fertilidade. As guelras abertas lhe provocavam falta de ar.
Separou as cabeças e arrumou os outrora peixes, agora simples pedaços de alimento numa forma de aluminio gasta de tanto arear na beira da praia. Cobriu com um pano limpo, impecávelmente branco e alisado com as mãos até que parecesse ter sido passado a ferro quente. Quem sabe fosse a brasa acesa no seu coração?
Com as cabeças numa bacia e a forma na outra abaixou a cabeça para entrar na casa. Era alta, mais alta que a maioria. Já lhe haviam dito que seria difícil encontrar namorado naquelas paragens. Talvez esse destino, traçado pela constante repetição do assunto, fosse o que lhe provocava anseios de correr o mundo. Pelo menos correr o mundo até a cidade vizinha, do outro lado do mar onde havia mais gente, mais animação, mais oportunidades. Colocou as cabeças de peixe numa panela com água e sal que pôs no fogo. Faria um pirão tão delicioso que quem o provasse teria sempre o desejo de voltar. Para isso servem as cabeças, para prender o coração dos incautos. Rapidamente coou a água que fervia retirando os pedaços de peixe e reservou. Picou cebola, esmagou alho e refogou. Juntou alguns pedacinhos de tomate que colhera no dia anterior no tomateiro e, por fim, colocou novamente a água, deixando apurar. Juntou a farinha de mandioca feita na última colheita e deixou que o caldo engrossasse até se transformar num pirão saboroso e cheiroso. Despejou numa tigela de vidro, a mais bonita que havia na casa, cobriu com outro pano impecável e foi se trocar. Procurou o menor short que tinha, aquele com que se sentia mais sensual, embora nem soubesse o que era isso. Colocou um top sobre os pequenos seios que começavam a crescer, penteou os cabelos duros e amarelados de sal e sol, prendeu com uma presilha de borboleta. Lavou bem as mãos com sabão de côco para tirar o cheiro do peixe e saiu em direção ao camping.
Na ponta da praia tomou o caminho das pedras por onde pulava quase sem olhar o chão. As pedras estavam quentes. Era necessário ser muito ágil para andar sobre elas sem queimar os pés descalços. Pulava dizendo que, se acabasse com o pé direito, era porque ele a amaria com o pé esquerdo, nem se interessaria. Chegou ao acampamento com o pé direito e um sorriso, desviou da escada encostada no telhado para não dar má sorte e foi em busca do pai, que servia refrigerantes e cervejas atrás do balcão de bambú.
- Pai, trouxe um pirão e os peixes que pediu. Achei só cavalinhas e tainhas. Tinha uns outros peixinhos, mas eram muito pequenininhos e deixei lá pra engordar.
O pai nem respondeu, só pegou a fôrma e colocou num canto do balcão. O pirão cheiroso ofereceu em voz alta:
- Olha gente, tem um pirão aqui, feito agorinha com farinha da nossa. Querem que eu frite uns peixes fresquinhos pra acompanhar?
Dina olhava em volta, tentando encontrar o rosto que não saía do seu pensamento. Havia muita gente aquele ano, mas parecia que todos eram casais. Um menino de costas chamou-lhe a atenção. O sangue ferveu, a cabeça rodopiou. Seria ele?
A tia, sentada ali perto, tudo percebia.
- Vem cá, Dina, eu faço uma simpatia pra ele querer você.
Mas Dina não queria simpatias. Não havia simpatia que pudesse acalmar o fogo que sentia por dentro.
O menino, como que sentindo o olhar fixo de Dina, se virou. Ela prendeu a respiração sem perceber e soltou um suspiro desanimado. Não era ele. Ainda não havia encontrado o menino dos seus sonhos. Virou-se e voltou para casa, procurando nas conchas uma que fosse totalmente branca, um sinal certo de que ele ainda viria.
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