BISCOITOS
SALGADOS
Beto Muniz
O
Aurélio diz que simpatia é o primeiro sentimento de amor.
Essa tradução me deixa feliz, pois no condomínio
que moro, todos dizem que minha filha é pura simpatia. Não
sei bem se existe uma condescendência geral quando dizem que ela
é encantadora, porém como pai eu concordo sempre; ela é
um amor. Mas é justamente por ela semear a esmo esse primeiro sentimento
que estou cismado.
Quase todas as tardes, por volta das 16:00 horas, minha menina, que tem apenas dois anos e meio, abre a porta, atravessa o hall e pára diante do apartamento em frente. Uma mãozinha fica suspensa no ar, pronta para a ação seguinte, enquanto a outra se fecha e é arremessada contra a madeira grossa. Uma, duas, três batidas semi-inaudíveis são produzidas com os nós dos dedinhos. Ela ainda não alcança o botão da campainha. Não sei se a vizinha fica à espera ou se realmente ouve o chamado, o fato é que atende e então a menina solicita com a mão estendida em concha, séria, como se a senhora idosa fosse obrigada a atender seu pedido: - Tem bolacha? - Oi, tudo bem? - Tudo. Tem bolacha? - Tem sim, você quer da recheada com desenho? - Quero. - Então entra. A visita entra e faz questão de fechar a porta atrás de si. Não sei o que acontece após a porta ser fechada, minha participação de pai à espreita termina ali, na lâmina de madeira, mas imagino uma cena típica de uma neta voluntariosa reinando absoluta nos domínios da vovó. A vizinha é uma senhora doce, fina, extremamente simpática, que adotou minha filha por neta. Reside no apartamento em frente há coisa de três anos, ela e o esposo, um senhor com aspecto bonachão de juiz de paz aposentado. Vejo-o pelas manhãs exercitando suas braçadas na piscina e nas tardes fazendo cooper em companhia da filha única, que mora no prédio em frente e herdou todas as boas características dos pais. É lógico que a minha criança sabe explorar também essa tia vizinha. Ganha doces, biscoitos e brinquedos e retribui com beijos estalados e abraços apertados: - Dá um "upa" na tia? Ela vai e enlaça o pescoço da moça. Aperta enquanto solta um "upa" tão longo quanto o abraço. - Uuuuuuuuupaa... Fico orgulhoso de minha cria, tão carinhosa e querida. Porém, quando pela primeira vez ela me escapuliu e bateu na porta em frente e pediu biscoitos eu fiquei constrangido. Tentei impedir que virasse costume, mas bastava um vacilo e ela me escapava para voltar com a boca cheia e as mãos também. Durante as férias eu consegui barrar-lhe a saída e por quase uma semana minha herdeira não perturbou os vizinhos. Achei que estava fazendo a coisa certa, mas fui surpreendido com a reação dos mesmos, que acompanhados da filha bateram em minha porta. Bateram mesmo, e depois explicaram que o som da campainha poderia incomodar o possível sono da neta adotiva. De fato ela dormia. - Desculpe incomodar - a avó era a porta voz -, mas a menina está bem? - Sim, por favor, entrem. Ela está bem, por quê? - Faz cinco dias que ela não aparece e ficamos preocupados, afinal o inverno sempre judia muito das crianças e dos idosos. Sem saber o que dizer para os visitantes, acabei sendo salvo pela pequena que saiu do quarto, ainda com cara de sono e, para deleite geral, se jogou nos braços da avó. Um por um, os três foram "upados". Confesso que fiquei enciumado com o gesto infantil, mas ele foi fator decisivo para que eu entendesse e permitisse, para o bem de todos e felicidade geral dos vizinhos, que todas as tardes minha filha fosse buscar biscoitos no apartamento em frente. Só estabeleci uma regra: - Vamos combinar uma senha para quando não puderem atendê-la. - Não é preciso, adoramos suas visitas, inclusive já sabemos quais os biscoitos que ela mais gosta e acrescentamos na cesta básica. - Obrigado pelo carinho, mas imprevistos acontecem e por isso prefiro estabelecer um código. - E se acaso eu não puder atendê-la, faço o quê? - Diga "Hoje só tem bolacha salgada". - Ela não gosta de biscoitos salgados. - Por isso mesmo. Já que estávamos de acordo, partimos para os cafezinhos. Desde então, sempre que minha simpática filha escapa de casa, eu, ou a mãe, ficamos na espreita até que a porta em frente se feche. A senha foi combina faz oito meses, e neste período todo a vizinha nunca teve biscoito salgado... Hoje tinha. Cismei! |