O
LIVRO DOS CAMINHOS QUE BIFURCAM
Paffomiloff
Estava escuro, e as ruas eram iluminadas precariamente por lampiões a gás, coisa que não via desde os meus tempos de criança, quando a eletricidade ainda dormia nos colos dos pesquisadores.
As casas eram juntas, e não possuíam portas. As janelas, todas fechadas, eram protegidas por pesadas barras de ferro. Foi quando dei conta de que não eram moradias, mas muralhas, e a vila não era senão um labirinto de vielas que navegavam pelo silêncio, sem levar a qualquer lugar.
Com o misto de esperança e temor, avistei uma pessoa, a quem minha miopia relegou à condição de sombra. Pensei em ir ao seu encontro, mas o vulto se antecipou, e veio a mim, roubando-me a opção de evitá-la.
Era tão alta e volumosa que poderia ser um minotauro. Mais tarde refleti que talvez o medo tenha exercido um efeito dilatador na minha percepção, embora sua superioridade física ficasse evidente, mesmo oculta pela pesada panaria que a cobria da cabeça aos pés, se é que os tinha.
- Vim trazer-lhe um presente - revelou o andarilho, entregando-me um tomo volumoso, de capa de couro, que logo percebi datar do século VIII ou IX, embora não possuísse colofon, o que me causou estranheza.
Estava escrito no horrendo latim inculto dos monges britânicos do primeiro milênio, mas a presença de tintas douradas e prateadas indicava que havia sido redigido por um copista experiente. Levantei o olhar para o andarilho, mas este se fora, aproveitando a minha distração.
O estudo do livro arrancou-me a atenção de minha condição de prisioneiro, e passei a navegar pelos textos, que citavam trechos de minha vida futura.
Espantei-me. Seria obra de um profeta?
Mas, à medida que ganhava intimidade com a obra, percebi que os trechos se contradiziam. Em alguns, minha visão era recuperada por uma cirurgia milagrosa, em outras eu me tornava num mendigo sem luz. Após um aturdimento, concebi uma hipótese sobre o volume, que depois demonstrou ser verdadeira: cada parágrafo se bifurcava em dois destinos possíveis, que se dividiam em quatro e assim por diante, contemplando todas as possibilidades de minha existência.
Talvez o livro houvesse sido furtado a uma biblioteca onde todos os futuros houvessem sido desenvolvidos binariamente. Geometricamente mais vasta que a biografia de homens vivos e mortos, pois guardaria todos os destinos, concretos e potenciais.
A princípio pensei que não seria de utilidade, pois, como o labirinto da cidade sem portas, o caminho certo só seria conhecido depois de trilhado, mas, numa segunda análise, imaginei que, se aquele tomo fora selecionado, entre todos os demais, se é que existiam, pelo menos o primeiro parágrafo deveria dizer uma verdade.
Com as mãos trêmulas, abri na primeira página, onde estava escrito nas letras compridas do copista:
"Certa noite, num sonho, Jorge Luís Borges descobriu que estava condenado a morrer de câncer".
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