O CUCO DO VOVÔ
Ubirajara Varela
Faz pouco tempo, eles ganharam em casa um relógio-cuco. Na verdade, não foi muito bem “ganhado”. Isso porque a mãe resolveu “apropriar-se” do dito marcador de horas, pertencente ao avô que, por sinal, encucou, ou melhor, caducou mesmo.
Do relógio, pode-se dizer que é um belíssimo exemplar. Raridade. A carcaça toda feita em madeira escura e duríssima de pau-ferro, enfeites nas pontas e abas, pesos no formato de espigas de milho. A maquinaria, ainda que oculta, conta com um tic-tac afinado, como o pulso de um coração. Trouxe para dentro de casa uma espécie de nostalgia, clima rústico, um ar de fazenda.
O avô tinha a pele clara, mas cheia de manchas. Morava com a filha, desde a morte de sua esposa. Até pensavam que ele iria antes dela, mas a sua saúde era de dar inveja: fortíssima. Completos noventa e dois aniversários, causa espanto em muitos médicos. Nunca teve com o que se preocupar, a não ser uma fraqueza nos pulmões. Culpa de uma tuberculose na sua mocidade.
Depois que se aposentara, na década de sessenta, o grande pai adquirira o relógio-cuco. Passava a maior parte do dia trancafiado na oficina, ouvindo rádio e acertando o tempo, sob aquela rotina crônica; ou melhor, cronológica. Sempre na hora mesma, com os mesmos gestos, precisão e método, lá estava o velhinho, puxando a corrente que proporcionava o bom andamento da relíquia. Sim, porque não se vê mais hoje em dia tais relógios nem mesmo em casa de avós!
Muito estimado por toda a família, este velhinho, como já disse, passou controlando o andamento do relógio e este último controlando-lhe a vida no seu compasso, segundo a segundo, e cotidianamente. – Isso, enquanto pôde. - Um belo dia, o relógio começou a atrasar. E o avô, a caducar. Ou vice-versa. A ordem dos fatos não importa. Sim, a desordem. Porque parece que ambos estavam em sintonia para o desconcerto. Era um tal de cuco soar três vezes ao meio-dia, doze vezes a uma e trinta, e o avô querendo passear de Ford de Bigode, visitar quem já morrera.
- Filho, dê uma olhadinha em seu avô!
- ‘Pera, mãe. Só um minutinho...
- Pára tudo agora e vai olhar. Se acontece alguma coisa com seu avô, a culpa é sua.
- Ah... ‘Tá bom... Já estou indo.
- Tudo bem, mãe. Ainda está vendo televisão. Jogo do Galo com o São Caetano, coitado.
A mãe, um tanto pessimista, começou a dizer que ele parecia um bebê. Tem que vigiar o tempo todo, não pode descuidar minuto sequer, perder a atenção nem pensar. Este velho só dá trabalho. Volta e meia urina no leito, faz pirraça quando não atendido em seus devaneios, resmunga o tempo todo. Quanto a isso, a mulher não se importava. Mais um argumento para sua teoria sobre o bebê, porque o resmungar, segundo ela, é o choro da maioridade.
- Pode ser um bebê no corpo de um velho ou o tempo atrasando na carcaça de uma relíquia. – filosofava o guri, em cima dos argumentos da mãe.
Mas o garoto achava que o avô estava mais divertido do que nunca. Ainda mais quando aprontava alguma. (...e como aprontava!). Ganharam em casa um cuco e um caduco. Poucos têm tamanha sorte. Tanto o resmungar do avô como o cantarolar desconexo da ave européia entalhada na madeira alegravam a casa, enchiam-na de vida. E se o avô cismava em dizer impropérios aos políticos de plantão, vislumbres de lucidez, desenterrando palavras, cujas quais, aos ouvidos do neto, pareciam palavrões intraduzíveis, era engraçadíssimo.
- Crapuloso, este tal topetudo. É um devasso. Não passa de um bonifrate nas mãos destes peemedebistas maiores. Energúmeno!
- Mãe... Corre, que o vô surtou de novo.
- Surtou nada, meu filho. Ele está coberto é de razão!
- Pândego! Incestuoso!
- Mãe...
- O que é desta vez?
- Acho que o relógio parou.
- Isso? É só dar um empurrãozinho no pêndulo.
- Mãe...
- De novo? Será que você não me deixa ver nem a novela em paz? O que foi agora?
- O vô ‘tá fazendo cuco igualzinho ao relógio.
- O moleque, dá um tempo!
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