GORGÔNIO
Mariazinha Cremasco

Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...
Meu Deus, Meu Deus...
(O Velho Do Espelho - Mário Quintana)

Meu nome é Gorgônio. Dizem que sou um velhinho moderno. Não concordo. Não sou velho, tampouco velhinho. Mania que essas pessoas têm de colocar a gente no diminutivo. Velhinho, bonitinho, gracinha, essas coisas que irritam os mais, digamos, vividos como eu. Eu diria os mais rodados, mas não fica bem a uma pessoa da "minha idade", falar gírias, não é? Bolas ao que fica ou não fica bem. Sou o que sou, como sou. Se quiserem criticar, estejam às ordens.

Não sou velho. Velho é meu sapato. Velha é a minha casa. Velho é meu carro. Eu diria que hoje sou a melhor versão de mim mesmo. Tenho 84 anos. Não devo ter muito tempo pela frente, mas o que tiver, será lucro. Ironicamente, o que mais tenho é tempo. Engraçado, não é? Tenho tempo para pensar, para observar, para ler, para passear. Tenho disposição também. Isso me faz talvez meio diferente das pessoas da minha idade. Acredito que as pessoas não nasceram para ficar doentes. Então tenho saúde. Morrerei tendo saúde. É no que acredito.

De vez em quando, alguém chega para mim e diz:" -Puxa, se o senhor é assim hoje, com 84 anos, imagine quando era jovem.Imagine como era no seu tempo.". Meu tempo. Ah. Meu tempo é hoje. Meu tempo é agora. Ai que raiva me dá quando falam "seu tempo" Eu era desse mesmo jeito. Só me aprimorei. Só melhorei um tantinho aqui, um tiquinho ali. Sempre gostei de gente. Sempre achei muito triste sentar num restaurante sozinho, ainda que fosse para tomar apenas um café. Mesmo em casa. -"Quer um café? Não repare na bagunça". Isso me faz um homem comum. Beber sozinho também não tem a menor graça. Nunca acreditei no desamparo, abandono, solidão absoluta. Sempre tentei fazer do próximo mais próximo um amigo, uma companhia. O objetivo? Ser feliz. Fazer feliz.

É mais fácil ser feliz apreciando as coisas que se tem, ao invés de sempre sonhar com o que não se tem ou o que se pensa que está faltando. É mais sereno. Só tenho certeza de uma coisa. A de que não tenho certeza de nada. Vou viver agora. Vou viver em função do presente e não do futuro, que não sei qual é. Faço concessões, sim. E não sofro por isso. Talvez as fizesse menos quando mais jovem. O fato de eu ser assim não me impede de sentir saudade do cheiro de café fresco invadindo a casa e das crianças correndo no jardim. Da minha soneca da tarde sendo interrompida por gritos, sorrisos e choros.O passado, ah... o passado. Hoje tenho todo o tempo para dormir. E fico acordado. Deve ser uma lei da natureza. As crianças precisam dormir muitas horas por dia. À medida em que o tempo passa, precisamos cada vez menos dormir. Não seria o sono um aprendizado? Então o todo poderoso lá de cima deve falar: "Esse aí já sabe muito. Deixa ele acordado" Percebam como os mais vividos dormem menos (se tiverem saúde, claro). Longe de mim achar que sei tudo. Nada sei. Nada sei. Só gosto de viver.

Como já disse, vivo o presente, mas cortar de vez o passado também não é bom. O tempo é senhor de tudo. O tempo tudo cura. Será?! O tempo é conselheiro. Pode ser.

Balanço de vida. Eu? Isso é coisa de velho. Criei meus filhos. Bem ou mal, estão aí. Também para criar filhos, não é necessário que se tenha certificado de competência.

Apesar dos 84 anos, quero renovar, quero mudar a cada dia .Sei lá quantos dias, nem me interessa saber. Quero vivê-los bem. Rotina é previsão. Há que se perceber que não se é o mesmo de ontem. Ganhamos refinamento e sensibilidade com a idade. Meu ideal é que a cada dia eu veja novas pessoas, tenha novos amigos. Que cada despedida diária seja como um verdadeiro adeus e que cada reencontro seja um grande amor. É a dança das mudanças.

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Vocês me pegaram. Acho que estou realmente velho.

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