INCORRIGÍVEL
Flora Rodrigues

Lisboa, 2 de Janeiro de 2000

 

Querida Maria,

Desculpa, eu quis viver a minha vida ignorando que te tinha ao meu lado. Estava demasiado embrenhado no meu mundo para perceber que te podia perder. No meu mundo, tu ias esperar até que um dia eu arranjasse tempo para ti. Mas a verdade é que tudo estava em primeiro lugar, a minha profissão, a minha ambição, os meus sonhos, os meus amigos, as minhas metas, os meus projectos, o meu sucesso. Pensei que o tempo ia parar para ti, e tu ias guardar o teu amor e esperar eternamente por mim.

Mas o tempo não parou e o meu egoísmo aumentou. Vivia isolado no meu mundo de sucesso. Embriagado com o sucesso, esquecia a euforia da corrida do tempo. Foi quando acordei e tu disseste que ias partir, que o tempo não parava , que o mundo continuava girar e tu não podias continuar parada à espera que um dia eu arranjasse tempo para te amar. Quis suplicar-te que não partisses mas o meu egoísmo impediu-me de arranjar tempo para sequer te suplicar.

Mas o tempo não parou, e tu partiste em busca do tempo perdido. Pergunto-me se algum dia o conseguirás recuperar. Pergunto-me se irás voltar. Pergunto-me se o tempo me dará uma nova chance para te amar. Eu não percebi que o tempo passou a correr e que eu te deixei cada vez mais sozinha, porque eu tinha sempre que fazer. Eu não percebi que os nossos filhos cresceram e se fizeram homens e mulheres. Eu não percebi que também tu tinhas tanto para fazer e pedias-me sempre para parar, pois tu ainda conseguias arranjar tempo para me amar.

Eu não sei como fizeste para arranjar tanto tempo. Tu arranjaste tempo para trabalhar, para educar os nossos filhos. Arranjaste tempo para dançar, para conversar e para cuidares de mim. Tu conseguiste viver, amar a vida e eu que te criticava por não ambicionares mais, do que essa vida simples que tinhas, nem sequer soube arranjar tempo para te amar.

Eu não percebi , que eu não vivi. Corri, sem parar ,sem olhar para os lados, como quem faz uma viagem sem ver a paisagem e fica sem nada para contar.

O tempo passou e eu amanheci sozinho. Completamente sozinho. Só hoje percebi que corria de encontro à solidão. Agora percebo a tua forma de viver. Tu sabias amar a vida. Eu nunca soube sequer amar. Desculpa não te ter ajudado a criar os nossos filhos, não te ter amado, não te ter compreendido. Desculpa não te ter deixado ensinares-me a amar a vida. Desculpa se eu fui tão egoísta ao ponto de ignorar que também tinhas direito a sonhar.

Sei que as lágrimas e o arrependimento em nada vão ajudar, mas não te queria deixar partir sem ao menos te pedir perdão do fundo do coração. Hoje eu arrependo-me do tempo que não passei contigo. Arrependo-me da dança que ficou por dançar, do passeio que ficou por dar, a conversa que ficou por acabar, da viagem que nunca fizemos , da vida que ficou por viver, do amor que eu não te soube dar.

A verdade é que sempre te invejei porque sabias combater a solidão e eu não.

Talvez seja tarde de mais para te fazer feliz, espero que não seja tarde de mais para te pedir perdão.

Desculpa, escrever, mas não consegui arranjar tempo para te visitar.

Creio ser esta a forma mais rápida de saber se tenho ou não o teu perdão.

Desculpa....

Sempre teu

José

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