MALDITA!
Carolina Marábes
Desgraçada, desgraçada, desgraçada!
Mil vezes desgraçada aquela "zinha"!
Desculpe começar uma crônica assim, com impropérios que nada
tem a ver com o tema da semana, mas eu preciso desabafar, pois
estou irritadíssima com uma mulher que encontrei na rua. Ou
melhor, não encontrei na rua, apenas vi, olhei e invejei.
Ela é absolutamente tudo que eu queria ser: linda, alta,
magérrima, bem vestida, cabelos lisos e, para me deixar verde, a
bordo de um carro nada popular. Bem diferente de mim, que vivo
brigando com meus quilos a mais, com meus cabelos duros (me faz
perder horas), com estas roupas mais usadas que cartão de
crédito e ainda por cima sem carro. Nem ao menos um Volkswagen
ano 74 eu consigo ter. Que ódio!
Eu estava atrasada, esperando o ônibus, quando a infeliz
encostou o carro no outro lado da rua, desceu, atraiu todos os
olhares masculinos e femininos, conferiu o pneu traseiro e, antes
que constatasse o defeito, várias mãos masculinas já estavam
de prontidão para executar a tarefa de troca. Ela só precisou
entregar a chave para que três homens se ajoelhassem aos seus
pés e diante do pneu furado. Assim que eles se debruçaram na
tarefa, ela sacou o celular e iniciou uma sessão de discar,
falar, desligar, discar novamente, falar coisas e desligar outra
vez, discar, falar, desligar... Eu estava paralisada por uma
inveja mutante que já se transformava em raiva. A dondoca
parecia que olhava para mim, mas os óculos escuros não me
deixavam ter certeza. Pareceu que leu meus pensamentos e levantou
os óculos. Olhou direto em meus olhos. Se eu não fosse quase
míope, poderia enxergar sua retina e definir a cor dos olhos.
Imaginei que eram verdes. "Só faltava isso para essa
maldita ser perfeita", pensei e apostei comigo mesma que
eram.
Perdida em contemplações e invejas, eu esqueci que estava
esperando o ônibus. Ele passou e só percebi quando era tarde
demais. Quase acenei em desespero, mas sabia que a loira do outro
lado da rua estava olhando para mim, e meu orgulho de fêmea,
disputando algo indefinido, falou mais alto e obrigou-me a manter
a pose de quem nem esperava aquele coletivo. Pensei em acenar
para o táxi que passava como se fosse o gesto mais comum do
mundo para mim, mas lembrei que meus trocados não completariam o
total da corrida e eu seria obrigada a sacar dinheiro da
prestação do meu toca CDs. Não compensava atrasar prestação
pelo prazer de sair com o nariz empinado pro lado da loira.
Desgraçada, precisava ser assim... tão diferente de mim? Não
sei se me irritou mais o fato de ela ter medidas perfeitas ou de
que ela não parecia ser dependente dos pais. Nem de ninguém.
Maldita! Surgiu do nada só para me lembrar de minha condição e
de meu formato arredondado.
Em tempo recorde, menos de quinze minutos, o carro estava em
condições de voltar a sua rotina. Mérito dos escravos
temporários da dona do veículo, ou dos atributos dela? Nem quis
pensar para não chegar a alguma conclusão que me fizesse
arrancar os cabelos. Mesmo tomada pela raiva eu acompanhei os
movimentos da mulher, que oferecia algum dinheiro para os
alforriados. Estes sorriram e, cavalheiros que se tornaram,
recusaram. Ela se despediu sem toca-los e entrou no carro. Eu
pensei que ela iria arrancar e sumir a toda velocidade, mas me
enganei. Sem pressa, como se tivesse todo tempo do mundo, e
talvez para me provocar, já que eu disfarçava olhando de
esguelha, ela baixou os vidros escuros deixando que eu percebesse
que me olhava. Agora toda minha inveja e raiva já eram ódio
puro. Quase gritei: "suma daqui sua vaca!", mas me
contive e mantive minha cara de paisagem. Acho mesmo que empinei
o nariz.
Ela então deu uma buzinada. Leve. Cordial. Eu olhei. Ela me
sorriu amistosamente, quase que com carinho, piscou, me enviou um
beijo nas pontas dos dedos, baixou os óculos, subiu os vidros e
arrancou.
- DESGRAÇADA!- dessa vez eu gritei.
Mas ela, provavelmente, nem ouvira minha impotente explosão de
ódio.
Pensando nisso eu fui para o meio da rua e acenei para ela com a
mão fechada e apenas o dedo médio em riste. Quase fui
atropelada pelo ônibus que freou bruscamente. Mantive a mão
erguida e baixei o dedo como se acenasse, graciosamente,
solicitando a parada do coletivo. Minutos depois, devidamente
recomposta e sentada, eu percebi que tinha pegado a condução
errada. Era outra linha.
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