USAR O TEMPO
Bárbara Helena
Entrei
na cabine e esperei. Precisava de muito tempo, um tempo infinito
para conseguir entender. Cliquei em milhares de anos atrás,
especifiquei as coordenadas e sentei. Logo tudo ficou confuso
como acontece nos pedidos extraordinários. A porta da cabine se
abriu alguns segundos depois.
Estava no meio do nada. Para onde olhasse só via estepes geladas
que um vento fino fustigava. Mas não sentia frio, é claro. Não
há sensações corporais térmicas no Tempore.
Andei um pouco, perdida, olhando o céu que era intensamente
azul, de uma tonalidade que já não existia na Terra há muitos
anos. Era agradável estar ali, sozinha na planície gelada,
debaixo de um céu de cobalto.
Caminhei sem destino, recitando os mantras. Parecia tudo sempre
igual e, só por isto, podia ser diferente dentro de mim.
O tigre apareceu de surpresa. Enorme, uma criatura fabulosa, de
músculos elásticos e fortes, esgueirando-se sobre o chão
gelado com uma graça lenta. Duas grandes presas alvas
sobressaiam dos lábios que uma língua vermelha e úmida lambia
de vez em quando. Aproximava-se de mim, mas eu não tinha medo.
Esperava.
O animal pareceu hesitar e eu sentei, abrindo os braços e ainda
recitando os mantras. Ele foi chegando cada vez mais perto,
lentamente, os olhos dourados fixos em mim, hipnóticos.
Eu também o fitava, calma. Desta vez não haveria desistências.
Repetia os mantras cada vez mais alto e a força deles parecia
impulsioná-lo para frente. Os olhos dourados já estavam a uma
distância de dois metros, avaliando, algo tensos, famintos. A
língua se tornara nervosa, mas o tigre se quedara, estático,
todo ele uma tensão absoluta, preparando o bote.
Com graça e agilidade felinas, ele saltou sobre mim e eu caí,
espalhando pedaços de gelo que se estilhaçaram com o choque. O
peso dele me tirou, por um momento, a respiração. Fiquei
ofegante, sentindo suas enormes patas no meu peito, os olhos
amarelos bem próximos do meu rosto.
Indagadores talvez? Não tive tempo de descobrir. Ele abocanhou
meu pescoço com as presas fortes, ouvi um estalo, uma nuvem
escura cobriu meu olhar. Ainda percebi, como num sonho, o sangue
se separando de mim e formando um rio vermelho que tingia de cor
a alvura uniforme da estepe gelada.
Quando regressei à cabine, uma estranha paz me invadiu. Podia
voltar ao meu verdadeiro tempo. Estava pronta para enfrentar o
que me esperava lá fora.
Abri a porta. Chovia como sempre. As gotas se refletiam nas luzes
dos altos edifícios de cristal. Pessoas passavam por mim,
indiferentes e eu a elas.
Só que agora eu tinha um tigre, tinha uma morte, tinha uma
experiência verdadeiramente minha.
Suicídios não são permitidos nesta época, mas usar o tempo
sim.
Para voltar ao índice, utilize o botão "back" do seu browser.