A SANHA DAS HORAS
Alberto Carmo

Fixou-lhe os olhos. Foi como o silêncio que precede as grandes tormentas. Havia uma certa pressão apertando-lhe os tímpanos, pressionando o crânio contra o cérebro - o movimento era premente. Um calor calado, inerte, como termômetro furtivo a esconder o serpentear da veia sangrenta e veloz, galgando vielas capilares, preparando o estampido ensurdecedor.

Quando lhe chegaria o feroz momento? Jamais saberia. Pelo menos enquanto o enfrentasse. Respirava com lentidão, no limite que lhe preservasse um anseio de pulsação. Apertava o pulso, percebia a veia mover-se vagarosamente, agonizante, com um insuflar perpétuo, interminável. O fluxo interno vinha-lhe como vulcão adormecido, a ciscar a claridade, vindo preguiçoso de entranhas adormecidas em viscosas vísceras.

Olhava a parede - nenhum movimento. Sabia que a batalha seria inevitavelmente vil, ilógica. Mas a sensação microscópica, a proteção do quase invisível, do quase irrisório espaço que ocupava, tudo lhe trazia a certeza de uma onipotência oportuna - prolongaria aquele caminho breve ao infinito.

Olhou a parede novamente - permanecia imóvel. Vencia por ora. A antítese da lógica teimava na vitória efêmera, como órbitas que se revoltam e freiam seus prisioneiros.

Como avesso de ímã, um torvelinho espanado de nebulosas, a dançar frenético ritual caótico, encolhia-se em feto, fechando o espaço em grilhões de dantesca gravidade - nada lhe escaparia dali. Cerrou unhas, crispou ossos, apertou o pulso com força macabra.

O torpor falseou-lhe a obstinação. Olhou a parede e lhe percebeu o tremor de músculo. Recuperou-se a tempo de bloquear a enxurrada que lhe insistia. Não lhe permitiria tentar sequer - não ainda.

Era uma criança agora, quando a página da enciclopédia algemou-lhe o futuro. Sabia que assim seria - estava lá, no futuro distante. Não precisaria lá chegar, por saber que a teria. Encerrou ali a ansiedade tola. Dali em diante não mais precisaria dela. Correu ao quintal e gritou: - Livre! E disparou no estilingue um cometa.

Na parede, o respirar ébrio, terminal. A corrente enfraquecia, indolente. A pouca vida que lhe restava pedia termo, ou alforria, numa fúria narcótica. O ar já não lhe insistia abrigo, o pensamento já não lhe implorava pernoite. O abandono da sobrevivência era irresistível, um descontrole fascinante das leis que lhe foram fiéis.

Eram anos dourados. Olhava a TV, o céu. A pegada viva, a distância tão cega. Ria, como num filme ao ar livre: - Estão lá! Depois adormeceu feliz - já conhecia a história.

Que ciência ainda lhe prendia o movimento? Que magia tentou-lhe enfeitiçar os
sentidos? Abandonou a dúvida junto àquele passado. Lutava contra o futuro, mantendo-o presente.

A dor da inconsciência ardia-lhe, as pálpebras ameaçavam com um gesto final. Por fim, libertou o pulso.

O ponteiro na parede sussurrou saciado, o segundo se completou. Já não continha aquela força harmônica, e adormeceu ao tic-tac teimoso.

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