REBUSCO-TE,
SENHORA
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Renato
Bittencourt Gomes
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Anelo
ardentemente solfejar minha breve ária. Que mais me resta? A pulcra musa,
tão diáfana e longínqua, esvaeceu-se, desfez-se como o fumo na brisa. Ai
de mim, que tomei por único abrigo o seu manto inconsútil! Eis-me agora
ao sabor cruento das intempéries. Um astro me calcina, o outro me enregela.
As águas do céu inundam-me e os ventos, armados da pachorra e da certeza
com que gastam montanhas, esculpem-me a face tenaz e irreversivelmente,
e sabem que séculos são a seu favor. Sinto na fronte o estigma de Caim,
fui ungido por uma qualquer maldição e hoje sei que Belzebu é um homem ocupado,
sempre à minha volta, a me desnivelar as veredas, a me impedir os caminhos,
a me cerrar as portas.
Flor inacessível! Que te lucra manter-se cidadela inexpugnável? Se não conheces meus assaltos, se ignoras meus floreios de adaga, também deixas de te inteirar dos volteios da minhas lira, não tomas posse do verbo que te guardo no coração. Então erro pelo reino da terra, em busca de vis consolos que nada são: além de ti, tudo me é indiferente. Resguarda-te, se te apraz. Contudo, sei que te é penoso manter-se intra muros, na solidão dos pátios e salões, sem ouvir as loas do teu vate. Sem este mísero bardo, tua corte é menor, e esta perda dói-te. Talvez seja mesmo irreparável, irreversível, insofismável. Conforme as engrenagens desta máquina que se chama o mundo, não haverá bálsamo para tamanha chaga e, acaso a lástima venha a fechar-se, a pele e a carne conservarão para sempre a cicatriz, permanecerá o breu de uma nódoa sobre o alvor do tecido e, no campo resplandecente, o ponto negro estará a impedir a lisa brancura do linho. Se será assim contigo, comigo serão os andrajos, será a vida sem parança, serão as mesas irregulares, os pernoites incertos, o continuado tormento. Mais valerá não ter visto a luz, se o destino era a eterna treva. Por isso pranteio os ruídos que conspurcam as mensagens: são eles fonte de quanto mal, de quanto tropeço, de quanta agonia. Rebusco-te, senhora. Se pequei por esta língua imoderada, agora peno por ver proibida qualquer das palavras que tenho para te enviar. Dura é esta condenação que me desafina as cordas do saltério e te veda os ouvidos. |