NO PRIMEIRO GESTO DE TODAS AS MANHÃS
May Parreira e Ferreira
 
 

ele vem e me beija a fronte. Hoje é dia especial, véspera de Natal, ele saiu mais cedo para fazer compras, chega com pacotes e cartas de felicitações pelo ano que entra. Os amigos são muitos, mas este dia é só nosso. Fico observando seus movimentos, ligeiros, precisos. Está feliz em criar o ambiente. Sobe no banquinho e estende um pequeno varal cruzando a sala. Teto todo decorado com bolas azuis, brilhantes, generosas, presas com cuidado, uma a uma. Velas acesas, champanhe no gelo, taças servidas. Não poderia faltar a música que dançamos tantas vezes. Melodia suave, ele me pega nos braços e desliza comigo não se importando com tapetes e móveis. De olhos fechados no céu, cortamos nuvens como manteiga, ele sussurrando meu nome, Dora, minha Dorinha encantada. O jantar tão bem preparado fica sobre a mesa. Outra rolha estoura e uma bola se transforma em confetes cristalinos. Ele ri e pergunta se me assustei. A taça na mão o acompanha para o quarto. Antes de se deitar me beija novamente a fronte, o último gesto de todas as noites. Do porta-retrato eu sorrio para ele. No canto inferior desta minha foto, com letra trêmula, ele um dia escreveu Dora 1945-1988

 
 
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