ARTE DE AMAR
Fernando Borba
 
 
Perguntei a Públio Ovídio se a Praça do Fórum tinha sido lugar de encontros e passeios românticos: "Aconselhas os amantes a que sejam pontuais para falar com suas namoradas, e foi aqui o encontro dado como exemplo." - Estávamos junto das escavações do Fórum Romano. Ovídio observava o fosso de sete metros onde se faziam os trabalhos de arqueologia, mas pessoas como ele já não se espantavam com nada.

"Este era um local de encontros cívicos, onde o povo se reunia em comícios, eleições, festas triunfais, e também para divertimento" - falou. - "A Roma dos começos da Era Cristã possuía outros lugares bem cuidados, onde os namorados se encontravam: o Circo, as Termas, e principalmente o Pórtico de Pompeu, para passear de mãos dadas, e mesmo sob o Pórtico de Lívia, ornado de quadros antigos."

"Devia ser uma cidade agradável, a capital do mundo" - eu disse. - "Depois tornou-se mais bela ainda, quando assumiram dirigentes mais caprichosos." - Lembrei-me que qualquer afirmação minha era uma grande pretensão. Que sabia eu?, enquanto aquele velho de brancos cabelos cacheados assistira a mais de dois mil anos de história. Perguntei se o amor era fácil, nos tempos do Pórtico de Pompeu.

"Pense no ensinamento dos mestres: 'a fronte do touro se submete ao arado, e os corcéis apertam em vão entre os dentes os freios. E a mim também cederá o amor. Para o amante decidido, nenhuma conquista é impossível."

Aquele era o começo de nossa conversa e eu queria ouvir Públio Ovídio sobre sua obra "Arte de Amar", que tinha escrito pouco antes da era de Cristo. Nisso, dois jovens se aproximaram, vindos do Arco de Constantino. O menos moço, saudando Ovídio, curvou-se e falou: "Ave, vir bonus, dicendi peritus!", que significa "Salve, homem de bem e orador exímio!" - era Adolphus Lisandrus, o Causídico. Seu companheiro era Antonius Ozus, o Poeta. O velho filósofo fez a saudação ritual aos visitantes.

"Falávamos sobre a Roma antiga", esclareci. E Ovídio retomou a palavra:

"César Augusto foi um modernizador da cidade. Meio século depois, eu já estava nas paragens do Hades, Nero tomou uma medida terrível, que foi o grande incêndio, em 64. Roma estava atulhada de pardieiros. Eram cristãos que vinham da Judéia, escravos libertos, mendigos, imigrantes à procura de trabalho vindos de todas as partes do mundo, que faziam seus casebres por onde queriam. Nero mandou atear fogo em tudo (aproveitando para culpar seus inimigos políticos e os cristãos) e logo contratou famosos urbanistas e arquitetos, como Severo e Celer, para remodelar a cidade. Depois, Domiciano e Tito construiram o Coliseu, e mais tarde Adriano fez grandes trabalhos de embelezamento. E notem uma coisa: as mulheres ficam mais belas quando estão em belos lugares."

"Sim, mestre" - falei. - "Agora mesmo, vejo caminhar pelas aléias cheias de flores daqueles jardins, uma bela mulher. Sinto que seus movimentos graciosos e as cores encantadoras de suas roupas se completam ali, como se também fossem matéria floral, coloridas e perfumadas." Todos olharam para a diva que se encaminhava em nossa direção, e Antonius Ozus citou um verso latino: "Vera incessu patuit dea!", isto é, "Pelo andar, ela parece uma deusa!". Qual não foi a surpresa, quando percebemos que aquela era Mira Mirabile, ou Mirinha, a Maravilhosa, nossa amiga.

"Mira, de dons magníficos, que uma deusa semelhas!", saudei-a, à maneira dos versos homéricos. Ovídio beijou-lhe a mão, e logo começou a falar-lhe com olhos quebrados e voz terna...

"Mestre, que dizes do temperamento das mulheres?" - indaguei.

"As mulheres não têm todas o mesmo temperamento. É erro grosseiro afirmar que são iguais. Para mil corações diferentes, emprega mil modos de cativá-las. A mesma terra não dá de tudo: uma convém à vinha, outra à oliveira, aquela aos cerais. Para lidares com as mulheres, sê amável e serás amado. Deves associar os dons do espírito aos dotes do corpo. Para reforçar tua beleza, quando velho, forma desde já um espírito à prova do tempo; é o único bem que nos acompanha até o fim. O que sobretudo conquista os corações é uma hábil ternura; a aspereza e as palavras acerbas geram o ódio; as palavras agradáveis são o alimento do amor." - E continuou: - "O homem avisado que assim trata as mulheres, pode ter esperança com todas elas, e dificilmente encontrará uma que lhe diga não. Porque, quer a mulher concorde, quer recuse, sempre se alegra em ser cortejada."

"E como deve o homem se apresentar fisicamente, mestre?"

"Ama a limpeza e serás agradável. Sejam tuas vestes bem feitas e isentas de nódoas; os dentes não devem ter manchas escuras; os cabelos não podem estar mal cortados ou eriçados; nenhum pelo deve ser visto saindo de tuas narinas; as unhas devem estar cortadas e limpas; um hálito impuro não deve sair da boca; não deves agredir o olfato com o cheiro que exala o macho da cabra. Todavia, não deves portar enfeites nem perfumes em excesso, pois estes cuidados não são para o homem, e sim para os que celebram a deusa Cibele com uivos imitados à moda frígia."

"Como se comportar nas diversões, mestre?"

"Ao beber, que os pés e o espírito guardem o equilíbrio. Evita as querelas estimuladas pelo vinho, e não te disponhas facilmente às rixas selvagens. Mas, eis chegado o momento de iniciar a conversação. Diz somente o que desejas e espontaneamente serás eloqüente. Representa o papel de amante e aparenta com tuas palavras que estás apaixonado. Busca por todos os meios inspirar confiança. Insinua-te furtivamente em sua alma com palavras agradáveis, como o regato que cobre a margem que o dominava. Não hesites em louvar cada detalhe de seu corpo: até as mais castas se deleitam com elogios feitos à sua beleza."

"Mas o que fazer, mestre, quando a bela resiste muito tempo à conquista?"

"Se os pedidos são respondidos com orgulhoso desdém, não insistas mais, e volta sobre teus passos. Muitas mulheres desejam o que lhes foge e detestam o que lhes oferecem com insistência. Sê menos importuno e deixarás de ser cansativo. Muda tua maneira de abordar a bela: o amor pode insinuar-se sob o véu da amizade. Mais de uma beldade cruel se deixou iludir por essa manobra, e o que se fez amigo conseguiu tornar-se amante. Porém,em tudo, busca cultivar a paciência."

Ovídio levantou-se dos degraus do Fórum em que estivera sentado, e convidou-nos a passear para os lados do Coliseu. Enquanto caminhávamos, o mestre retomou a palavra, passando a descrever a fase em que, conquistada, a bela e o amante se recolhem ao leito.

"Musa, aqui detém teus passos à porta fechada do quarto. Espontaneamente, eles dirão as palavras ternas que costumam brotar nessas ocasiões, e as mãos não ficarão ociosas: há muito o que fazer naquelas partes em que o Amor secretamente gosta de cravar suas setas. Atenção: não deves apressar o prazer de Vênus. Quando houveres encontrado o lugar em que a mulher mais gosta de ser acariciada, que o pudor não detenha tuas carícias. Verás brilhar seus olhos com trêmulo clarão. Depois virão os queixumes, depois um amável murmúrio e doces gemidos e as palavras mais próprias a esse jogo. Mas não vás, soltando muito as velas, terminar antes da amante, nem permitas que ela se adiante ao teu curso. Avançai juntos para a meta: a volúpia atinge o cúmulo, quando, vencidos por ela, o homem e a mulher sucumbem ao mesmo tempo. E quando o retardamento é perigoso, é bom remar com toda a força, incitar com as esporas o cavalo impetuoso."

Nesse momento, Mirinha interpelou Ovídio e lembrou-lhe que até ali seus conselhos foram dirigidos aos homens: "Mestre, teus ensinamentos são cheios de sabedoria e verdade. Mas diz, as mulheres não receberão também as armas para a guerra?"

"Até agora armei os gregos contra as amazonas. Resta agora armar Pentesiléia e seu exército." - respondeu. - "Que ambos os lados vão à batalha com armas iguais, pois não era justo que as mulheres, desarmadas, se medissem com inimigos bem providos. Assim, homens, a vitória seria para vós uma desonra." - Sentamos nas escadarias das Termas de Tito e Ovídio recomeçou a falar:

"Primeiramente, há que cuidar do corpo. Não preciso recomendar-vos que vossas axilas não devem ferir o olfato, nem que vossas pernas não devem se cobrir de pelos rudes! Todo cuidado com a limpeza é pouco. A beleza espontânea é um presente dos deuses, e as que não o receberam devem trabalhar dobrado para se tornarem belas. Cuidai dos cabelos e da pele com os mil recursos que aí existem. Que direi das vestes? Devem ser belas na simplicidade. Estas estátuas magníficas foram outrora bloco inerte e rude. É necessário bater o ouro bruto para dele se fazer um anel. Os tecidos mais sutis foram lã sórdida. Deveis ainda dissimular as imperfeições: se sois pequena, ficai sentada, para que, estando de pé, não pensem que estais agachada. A que é muito fina deve se vestir com largo manto. A que é pálida deve tingir a pele com o vermelhão, a que é escura recorrerá ao peixe de Faros. Uma perna magra não deve ser mostrada sem faixas. A mulher deve fazer poucos gestos ao falar. Ao rir, deveis abrir moderadamente os lábios, e aprender a fazer covinhas nas duas faces, de modo a ter um sorriso doce e feminino. As mulheres aprendem a chorar com graça, como querem e quando querem; sabem tamém mudar a pronúncia dos fonemas e balbuciar sons encantadores, e essas armas são poderosas para lidar com os tolos dos homens. Aprendei a andar: com estudados movimentos e cheia de graça, a mulher pode fazer ondular as vestes ao sabor do vento e avançar em passo majestoso. As sereias eram monstros que encantavam os nautas pelo canto mavioso; as mulheres devem aprender a cantar, pois muitas, à falta da beleza, foram sedutoras com sua voz; igualmente, devem dominar a lira e a cítara, lembrando-vos que foi ferindo os instrumentos que Orfeu comoveu até os animais selvagens. Aprendei os versos de Calímaco e os do poeta de Cós, e sabei recitá-los, pois é encantadora a mulher que conhece os artifícios da poesia. Também exijo numa jovem o talento da dança, para que, depostas as taças, ela saiba mover graciosamente os braços..."

Ovídio estendeu o olhar pela perspectiva, ao longe, lembrando o Estádio de Domiciano, onde ele assistira em sua juventude às lutas de gladiadores. Destruído na Idade Média, ali existe hoje a belíssima Piazza Navona. E continuou:

"Cuidado com os falsos juramentos dos homens, pois que são mestres no jurar em vão. Se os homens vos fazem belas promessas, prometei outro tanto em palavras. Quando receberdes cartas, examinai atentamente tudo o que ledes, e procurai saber se o amor é simulado ou as súplicas partem do coração. Desconfiai mil vezes, para acreditar uma vez. Ao responder, dareis um pouco de demora, que sempre incita os amantes. Se cultivas um amante em segredo, aprendei a variar a letra de diversas maneiras, para melhor esconder-vos. Observai que nós, os poetas, somos mais hábeis em amar que os outros; fazemos brilhar longe a glória do amor que nos encanta. Sabei que os poetas ignoram os ardis e que nossa arte contribui para polir os costumes. Jovens mulheres, sede boas para os poetas da Aônia: levamos um deus dentro de nós e as musas nos amam..."

"O novo amante capturado em vossas redes deve pensar que é o único admitido em vosso leito, mas em seguida ele deve temer um rival e a perda do posto. Deveis fingir que ele é vigiado e que há outro amante ciumento, pois isso excitará sua paixão. Embora vos seja mais fácil fazê-lo entrar pela porta, fazei-o passar em segredo pela janela, e que ele veja em teu rosto os sinais do medo. Para serdes ainda mais convincente, uma astuta criada irromperá no quarto e exclamará: 'Estamos perdidas!'; então, escondei em qualquer parte o jovem trêmulo. Entretanto, misturai aos temores os prazeres de Vênus, e nada será mais delicioso para ambos."

"Eu ia passar em silêncio sobre os meios de enganar o marido sagaz, porém nada seria mais injusto para com a mulher; portanto, para enganar, vinde ao meu templo. Embora tenhais tantos vigias quanto Argos tinha de olhos, enganareis a todos se tiverdes vontade firme. De começo, sabeis que o guardião pode ser comprado com presentes, eis que os presentes seduzem os homens. Temei os amigos, como aquela amiga que vos empresta a casa e o leito; ela ali já foi com outros. Não tenhais criada demasiado formosa, pois muitas já têm feito as vezes de senhoras. Se um amigo do casal vos agrada, fingi o contrário, e fazei vosso marido acreditar que o achais feio e tolo."

"É chegado o momento de ides aos festins. Chegai tarde e exibi vossa beleza à luz das lâmpadas; sereis melhor recebida chegando tarde; a espera é boa sedutora; ainda que não sejais bela, podereis parecê-lo aos olhos perturbados pelo vinho. Tomai os alimentos delicadamente, com a ponta dos dedos, e comei moderadamente; se Páris visse Helena comendo avidamente, ele a desprezaria, dizendo: 'Que tolo o rapto meu!'. O amor e o vinho harmonizam-se, mas é preciso que a cabeça suporte o vinho e que o andar e o espírito permaneçam firmes. É vergonheoso que uma mulher mergulhe na embriaguês. É preciso, à mesa, não sucumbir ao sono."

"Cada mulher deve se conhecer e adotar a postura mais correta para seu corpo. Ponha-se de joelhos sobre o leito, a cabeça levemente inclinada, aquela que é notável pela linha dos flancos; se vossas coxas são juvenis e o busto perfeito, deveis estender-vos obliquamente no leito. Que a luz não penetre no quarto por largas janelas; muitas partes do corpo ganham em ficar escondidas. Que a mulher extasiada sinta o prazer circular até o mais fundo da medula e o gozo seja partilhado por ambos os amantes. Que durante o prazer não cessem as palavras ternas e os doces murmúrios, nem que o falso pudor faça calar as palavras licenciosas que porventura ambos gostam de falar."

"Chego ao fim de meu jogo. Como outrora fizeram os jovens, que agora as mulheres inscrevam em seus troféus: 'Públio Ovídio foi o meu Mestre!".

Ficamos todos calados por muito tempo, vendo as folhas, no chão, rodopiando ao vento. Aos poucos, sons de cítara, de viola de gamba, foram tomando corpo na tarde macia, vindos de algum antigo vitrovo. Fomos andando lentamente na direção da música, e nem percebemos que Óvídio não mais nos acompanhava.

 
 
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