FRACTAL
VII
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Sérgio
Galli
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"Vivemos
sob a tirania da informação e do dinheiro"
- Milton Santos - Hoje vou escrever em primeira pessoa. Antes de começar a labuta escrevinhadora, tomei um copo de água e uma xícara de café. Vamos lá. A insignificância de uma bactéria é incomparavelmente significante diante do insignificante homo sapiens. Insone, meu cérebro intrigava-se com esses pensamentos germinais. A ligação perigosa entre um ser unicelular, microscópico, invisível ao nosso olhar humano, e esse mamífero bípede que, em sua incomensurável arrogância pretende a imortalidade e o domínio absoluto, absurdo, sobre este ínfimo planeta pertencente a uma entre bilhões e bilhões de galáxias que se movimenta num universo em expansão. Big-bang. Num ardente beijo cometido por dois lábios apaixonados, milhares de bactérias conspiram uma orgia virótica. Sim, uma frágil bactéria pode por abaixo essa portentosa máquina de músculos, ossos, sangue e glândulas. Ainda insone, levanto-me. Com um gosto de café e do beijo da mulher na boca, ligo a televisão. Bom dia Paulicéia desvairadíssima. Bom dia Mundo. Bom dia planeta Terra. Mais uma chacina na periferia: quatro jovens mortos. Trânsito congestionado nas marginais do rio Tietê. Juíza manda bloquear contas de ex-prefeito em Paraíso Fiscal. Vereador é acusado de corrupção. Aumento de imposto, das contas de luz, água, telefone, água, tv a cabo.... Enésima rebelião de presos na Casa de Detenção. Câmara aprova anistia a comerciantes que têm loja em rua residencial (Zona 1). Índice de desemprego aumenta na Grande São Paulo. Dólar em alta. Bolsas em queda. Suicida se joga nos trilhos do metrô. Xópins esperam aumento de vendas neste final de ano. Apreendida uma tonelada de cocaína no aeroporto de Congonhas. Estrela da novela das oito está de namoro como modelo famoso. George Harrison morreu. A única coisa boa de tudo isso é que o noticiário é apresentado pela Mariana Godoy. Só os canalhas não morrem. Este ano foi pródigo em perdas irreparáveis: Jorge Amado, Milton Santos, Joe Henderson, George Harrison. Devo ter esquecido outros, Mário Covas, por exemplo, um político raro. Particularmente, também tive uma perda pessoal. Só os canalhas não morrem. Não é preciso citar nomes, mesmo porque não merecem ter seus nomes impressos numa crônica literária, apenas deveriam ser citados nas crônicas policiais. Só os canalhas não morrem. O novo milênio (essa mania de gigantismos e de efemérides é ridícula, mas, enfim, la nave va) começou tal qual todos os outros milênios: guerra! Os Senhores da Guerra e os Senhores do Universo reinam e brincam com mais guerrinhas, mísseis, bombardeiros, petulância, arrogância. Nós, a malta, continuamos rumo ao matadouro, sendo apenas mais um algarismo nas planilhas, nas estatísticas, nos gráficos, nas pesquisas, nos livros-caixa, na numerologia oficial dos burocratas, serviçais dos Senhores da Guerra, dos Senhores do Universo. É natal! O café está sem açúcar (é assim que o tomo) e isto não é sabor de amargura, apenas um ensaio céptico. De volta às bactérias, receio que elas serão as únicas sobreviventes pós o último pó. Afinal, elas e alguns outros seres unicelulares são os únicos a ainda terem vértebras, caráter, honra, ética, dignidade. Para uma crônica de final de ano não está lá essas coisas, um pouco repetitiva e sem muitas novidades. Enfim, o cronista nem sempre é genial (banalizaram essa palavra também: qualquer um hoje em dias que escreve, compõe algo um pouquinho diferente vira gênio. Também, hoje em dia, basta aparecer cinco minutos na televisão é já é "artista"!) e tem lá seus dias em que não está com alguma inspiração e nem muita transpiração. |