CONFUSO HORÁRIO
Roseli Pereira
 
 
Você já ferveu laranjada pensando que era leite? Já passou inseticida na cabeça na certeza de que era fixador de cabelo? Já se queimou diversas vezes - e nas partes mais improváveis do corpo - tentando tirar dobras e amassadinhos da roupa, sem antes sair de dentro dela? Não, né? Então parabéns! Você foi escolhido pela natureza para ser uma pessoa diurna. Ou, quem sabe, uma pessoa noturna que consegue viver dentro do seu próprio fuso horário.

No meu caso, como você já percebeu, as coisas são meio diferentes. Depois de passar mais de quarenta anos aos tropeços, achando que a solução da minha vida seria atuar com os Trapalhões, finalmente fui informada de que sou uma pessoa noturna que tem que fazer tudo ao contrário.

Sim, porque segundo o meu organismo, o certo seria acordar lá pelas onze ou meio-dia, me dedicar ao lazer e às atividades pessoais até umas oito da noite e só então começar a trabalhar. Nestas condições, o serviço renderia maravilhosa e ininterruptamente até as quatro ou cinco da manhã: um belo horário pra ir deitar.

Mas como o mundo é diurno, e pelo menos oficialmente a minha profissão também o é, eu vivo na contramão do tempo. E sempre dá no que dá.

Tudo bem, eu respeito as pessoas diurnas. Invejo sua imensa capacidade de desfrutar o frescor das manhãs orvalhadas e de dar conta de listas e listas de coisas antes que eu consiga tirar o suéter das costas. Ou me livrar dos óculos escuros. Note, ainda, que eu nem as recrimino quando elas bocejam durante o jantar. Por que, então, sempre aparece algum engraçadinho pra me desejar boa tarde às dez e meia da manhã? Por que sempre supõem que eu passo as noites bebendo com os amigos? E, sobretudo, por que o mundo insiste em marcar reuniões em qualquer horário antes das onze e quarenta e cinco?

Bom, também é preciso dizer que, depois de algum tempo de convivência, os meus colegas de trabalho sempre procuram me poupar. Afinal, prevenir acidentes é dever de todo cidadão. Mas quando isso não é possível, confesso que vou aos lugares só de corpo presente. Porque a alma fica lá, encolhida no maciozinho do estômago, dormindo profundamente. E, enquanto isso, o meu desastrado piloto automático vai me deixando sair de casa menstruada e sem absorvente higiênico. Isso só pra dar um exemplozinho básico do tipo de barbaridades de que um fuso horário confuso é capaz.

Mas já que a vida é mesmo assim, pelo menos uma coisa me consola: de insônia - e disso tenho a mais absoluta certeza - eu nunca vou sofrer. Graças a Deus.

 
 
fale com a autora