EU, NOTÍVAGO
Paulo Panzoldo
 
 
O Homem esqueceu o tempo e criou máquinas para ganhar mais tempo. O resultado é que o tempo "voa" e o Homem não tem mais tempo.

Resolvi comprar um relógio, ou melhor, um despertador, desses de camelô, mas não daqueles de pilha, que incomodam qualquer cristão que passa pelo Largo da Batata. Não, ele é daqueles modelos antigos, de corda, utilizados em alguns desenhos animados e em alguns filmes para disparar bombas-relógio.

Há tempos não me preocupo com as horas - nem mesmo com os dias: vivo "na horizontal", um modo diferente de ver o mundo, segundo Thomas Mann em "A Montanha Mágica". Quando vivia na "vertical", ou seja, como gente considerada normal, tinha relógios por todos os cantos e nunca sabia qual a hora certa. Tentava ganhar tempo, o dia era curto demais e, pior, sofria de insônia e não via o tempo passar. Mas, afinal, o que é o tempo? Muitos já responderam a essa questão e foram desmentidos séculos depois. Einstein desmentiu Newton, com sua teoria da relatividade. Insônia é uma coisa horrível. Eu deitava e virava de um lado para o outro, com aquelas preocupações todas: bancos, clientes, funcionários. Tornou-se um hábito, aliás, um péssimo hábito para quem chegava a dormir até catorze horas por dia quando nenê. Acabei pensando que dormir era para os justos e até criei um certo sentimento de culpa por isso.

Besteira. Pura besteira. Hoje deixei de ser insone. Sou notívago. Só comprei o tal relógio que é para ver o tempo passar. Como o relógio não possui o ponteiro dos segundos, fico observando o ponteiro maior andar lentamente sobre o mostrador, esperando que algo aconteça quando ele atingir o risquinho de mais um minuto. Até agora, nada, absolutamente nada de diferente aconteceu. É como se eu estivesse tentando agarrar o tempo, inutilmente, pela cauda. Doce ilusão. Como meu espaço é limitado, meu tempo é maior e com ele aprendi muita coisa. Deixei de ser insone para me transformar em notívago.

Quando insone, eu pensava, pensava e o que conseguia era mais um problema: o sono na manhã seguinte. Notívago, durmo quando quero, quando sinto sono e, ao invés de ficar ansioso, estou ficando mais culto, acho. Tenho tempo para ler os livros que não li, ouvir as músicas que não ouvi e pensar em coisas que jamais pensei enquanto vivia "na vertical". Tenho até tempo para escrever esta crônica, em plena madrugada, sem me preocupar com o amanhã, pois este, para mim, há muito deixou de existir.

O amanhã é pequeno demais para nós, seres horizontais, que se posicionam como meros observadores dos acontecimentos. O ontem, está perto demais para ser lembrado, e o aqui e agora tem uma extensão indescritivelmente boa, ou melhor, boa demais para ser descrita. A única maneira de desvendar o tempo é a capacidade da memória, que se constrói da capacidade ativa do viver intensamente - na horizontal - e do esquecimento voluntário. Objetivamente, o tempo é como um rio que caminha na direção do mar. E o Homem, boiando em sua superfície, vai ao encontro de seu destino ou da morte. Perdeu o controle sobre o tempo, e esta é uma imagem que pode ser considerada parcialmente verdadeira.

Fui! Dormir...

 
 
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