ESPELHO
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Alberto
Carmo
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Bati-lhe
à porta tarde da noite. Estava aberta, impacientemente aberta. Ela correu
súbita ao quarto. Pude escutar-lhe apenas o resto de perfume no espelho
da sala. Era uma imagem tão nítida, que lhe senti o roçar dos pelos pubianos.
Os seios pontiagudos ainda secavam nas marcas da prata fria e arrepiada.
Uma lágrima enternecida ainda escorria, triste. Dos soluços ainda havia
refletidos ecos, estilhaçados aos meus pés, como falsos diamantes. Atrasei-me
no desespero do relógio. Mas a queria ver, ainda...
Um canto da moldura serviu-me jantar frio e solitário na mesa cuidada. Será que chorava? Não pude sabê-lo, ela cobriu o rosto antes que eu buscasse outra coisa que não fosse o reflexo de suas ancas torneadas. Como me teria fitado naquele instante, vendo-me perdido na água-furtada dos seus sabores? Em vão implorei ao espelho que retrocedesse no tempo, que me concedesse ao menos a benesse dos cabelos dela em retirada, as pegadas descalças dos passos que ainda soavam macios. Riu-se o traidor, guardião fiel do tesouro que me escondia. Pensei em invadir-lhe a alcova em beijos amordaçados pela espera. Riu-se o cruel carcereiro, a mostrar-me a porta entreaberta, e ela, qual deusa sublime, em seu sono de musa intocada. Propus-lhe um jogo - dados, cartas. Mas ele sempre me empatava a aposta. Tentei o desvario da trapaça, mas ele me encarcerava os olhos traiçoeiros, transparentes. Conhecia meus desejos, e deles fazia troça. A cada apelo meu jogava-me à face o badalar do relógio de parede, aquela parede alva como a pele de sua protegida. Quis correr à janela e gritar seu nome aos telhados. Mas seus gestos carrascos m'as fecharam num vento ofegante, antes que eu me voltasse. Adivinhava meus pensamentos e pesares. Como um verdugo, apontava-me as mãos suadas e postas em prece. Guiava meus olhos como um ventríloco mudo, prendia-me as reações com os elos da minha fraqueza. Não havia gesto que eu fizesse, que não me acusasse com chicote implacável. Sentia-me preso aos seus pensamentos. Mesmo as miragens que me fluíam livres - dela a embelezar aquele quadro orgulhoso, a dançar em movimentos delicados e bruscos - tudo ele me percebia, a mirar-me a pupila venturosa. Trazia-me o lustre ofuscante, e tornava opacos meus delírios. Tentei me embebedar, apontou-me a garrafa vazia, sóbria. Implorei um livro, mostrou-me um jornal jogado aos cantos. Prendia-me ali, sem defesa, em garras de essências, enquanto sacudia-me a visão invertida da sala parada, do relógio lento, da janela escura, da manhã longínqua. Quis jogar uma pedra; riu-se ele da minha má sorte. Sabia-me enlouquecendo, prolongava aquele torpor. Agarrei-o com mãos fortes; enfrentou-me com força igual. Retribuiu-me a revolta com rugas na testa. Propôs-me uma trégua, o covarde. Recusei. Buscou dela um caleidoscópio, ceguei-me. Reteve a imagem ida, curvei-me em olhar genuflexo. Num golpe brusco, virei-lhe a face contra a parede. Venci afinal! Veio-me o sono, amanhecia ainda... |