BEIJO NA BOCA NÃO!
Rodrigo Stulzer
 
 
Ela não beijava na boca. Afinal, qual seria outra maneira de uma dama da noite ter respeito dos homens?

Nem ela mesma entendia o porquê daquilo. Aprendeu com as outras meninas. Logo que ela começou a trabalhar na casa de Dona Marta, Carmen a repreendeu:

- Fátima, vê se não me beija mais nenhum cliente. O que você quer que as outras moças pensem de você?

- Mas beijar não pode? - disse Fátima, toda envergonhada.

- Não, minha filha. Você tem que preservar algo. Mesmo que eles lhe ofereçam muito dinheiro você não aceita!

- Mas não é melhor dar uns beijinhos do que dar outras coisas? - perguntou Fátima surpresa.

- Beijinhos eles tem em casa - disse Carmen -, outras coisas, só aqui.

Fátima ficou com aquilo na cabeça o resto da tarde. Recém saída do interior não conseguia concordar com Carmen; afinal, um beijinho nem doia. Resolveu esquecer e dormir um pouco; tinha que estar preparada para quando os clientes chegassem.

Acordou com um barulho estranho. As paredes eram de madeira. Qualquer som parecia que vinha de dentro do próprio quarto. Os barulhos, na verdade, eram gemidos; e pelo jeito era Mirtes com o Seu Zé da venda. "Velho safado", pensou ela. Vinha no bordel no final da tarde, depois de fechar a venda, porque tinha que estar em casa antes do horário da missa.

Mirtes dizia que Seu Zé era bonzinho. Trazia doces para ela, pagava em dia e fazia o serviço rapidinho; nem dava tempo de suar. Seu Zé era cliente antigo, fixo; não era qualquer uma que conseguia isso. Ainda mais com a falta de emprego que assolava a região.

Mirtes já estava na casa de Dona Marta fazia 3 anos. Conhecia todos os clientes e tinha 4 fixos. Até o ano anterior diziam que ela tinha 5, mas o coitado do quinto, um tal de Pedrão, morreu numa briga de bar, com uma peixeira na testa. Mirtes chorou quatro dias seguidos, um para cada tostão que Pedrão pagava para ela. Depois do luto, começou a procurar mais um cliente para tomar o lugar do falecido. Nunca mais conseguiu. Dizem as más linguas que ela estava ficando velha e não conseguia pegar os galinhos novos.

- Pelo menos me garanto com os galo velho - dizia rindo, entre uma garfada de arroz com feijão na cozinha de Dona Marta.

Fátima escutou o Seu Zé saindo do quarto e esperou uns minutos.

- Fátimaaaaa, pode vir, já me vesti - disse Mirtes com a boca cheia.

Fátima saltou da cama e foi, de calcinha e sutiã para o quarto da amiga. Ela sempre ia fazer uma boquinha com os doces que Seu Zé trazia para Mirtes.

- O que ele trouxe hoje? - disse Fátima.

- Dois saquinhos de paçoca e um pé-de-moleque.

- Nossa, a crise está braba mesmo. E o pão de mel que ele sempre trazia?

- Nem o cheiro - disse Mirtes. - Ele falou que a patroa anda reclamando que tem sumindo muita coisa da Venda.

- E eu gostava tanto - disse Fátima entristecida. - Será que se eu der para ele, ele me dá um pacote de pão de mel?

- Olha aqui sua vaca - disse Mirtes, já tirando o único pé-de-moleque da cama e guardando na penteadeira - não mexe com o meu homem.

- Ai Mirtes, desculpa. Era que eu tava com vontade de comer pão de mel - disse Fátima.

- Tudo bem - disse Mirtes. - Agora sai daqui que eu quero dormir.

Fátima saiu do quarto e resolveu tomar banho. Se tinha uma coisa boa naquela casa era a hora do banho. Dona Marta dizia que os homens gostavam mais de mulheres cheirosas. Tinha colocado um chuveiro elétrico em cada banheiro e o xampu era de graça. "Dona Marta é esperta", pensou Fátima. Tinha gente que dizia que a casa de Dona Marta era a mais movimentada porque as meninas lá tinham um cheiro bom.

A noite estava devagar. Era meio de semana e a maioria dos homens estava em casa ou enchendo a cara no bar do Seu Manuel; aquele em que o Pedrão tinha levado a peixeira na cara. Beber na casa de Dona Marta era mais caro. A pinga aqui custava 3 contos, enquanto que no bar saia por 1; isso sem contar a choradinha, que já era praxe da casa.

As outras meninas estavam também parecendo tristes. Noite sem cliente é sempre noite triste. Pelo menos tinham agora uma televisão e podiam assistir a novela.

- Investimento meninas - disse Dona Marta. - Agora os clientes já tem onde ver os jogos do Brasil.

Um carro parou na frente da casa e todas correram para ver quem era. Fusca vermelho, lanterna queimada e três homens dentro. Pelo barulho que fizeram ao sair do carro deviam estar no bar do Seu Manuel. Falavam alto e um deles quase tropeçou na bicicleta de Carmen, estacionada na frente da porta.

Carmen tinha um ciúme danado daquela bicicleta. Ganhara-a em pagamento de serviços prestados. Adorava a sua cor, de um vermelho vivo que combinava com o esmalte de suas unhas. Quando saia para andar não podia ir muito longe. O máximo que fazia era dar uma volta pelo asfalto, perto da casa de Dona Marta. Na cidade foi só uma vez; acabou desistindo porque as crianças de rua não paravam de correr atrás dela puxando a ponta de sua saia.

O alvoroço já estava grande dentro da casa quando bateram à porta. Foi mulher para todo lado cuidando da arrumação. Dois eram mais velhos e pela cara estavam um pouco bêbados. O outro não deveria ter mais de 16 anos.

- Vão entrando! - disse Dona Marta - As meninas já estavam ficando tristes porque ninguém veio nos visitar hoje.

- Não seja por isso - disse o mais velho dos três. - Meu nome é Sebastião. Este aqui é Silvério - apontando para o outro.

- E este é o meu sobrinho Cândido - disse Silvério.

- E tem bebida nesta casa? - disse Sebastião.

- É claro - disse Dona Marta. - Meninas, tragam aquela pinga que compramos na Venda do Seu Zé. Ele disse que esta pinga vem direto dos engenhos de cana do norte do estado; que é envelhecida com folha de bananeira.

- Não falei Silvério, que a coisa aqui era de primeira? - disse Sebastião.

- Pois é, compadre - disse Silvério. - E não é só a pinga - olhando para as meninas no outro lado da sala.

- Vamos sentar - disse Dona Marta. - Aqui quem manda é o cliente. O que vai ser hoje? Festa ou diversão?

- Estamos com uma missão Dona Marta - disse Sebastião. - Cândido, deixe a gente falar com a senhora e vai se enturmar com as meninas.

Sebastião empurrou Cândido. Ele foi arrastada para a sala vizinha, onde havia música e grandes sofás. Aquela sala tinha muitas histórias para contar; mesmo assim o sigilo era preservado. Esta era outra das regras de Dona Marta - Aqui ninguém viu nada, ninguém fala nada - dizia todos os dias.

- Sabe como é Dona Marta - disse Sebastião. - Cândido ainda não virou homem. Achamos que a sua casa era a mais respeitosa para acabar com este sofrimento do rapaz.

- Pois vieram na casa certa - disse Dona Marta. - O que vocês querem? Temos as melhores meninas da região.

- Ainda não sabemos. Hmm, e aquela moreninha, está disponível? - disse Silvério olhando para Fátima.

- Fátima é nova por aqui - disse Dona Marta - Ela não entende muito das coisas. Veio a poucas semanas para cá e só conheceu alguns homens. Ainda precisa trabalhar bastante para dominar a arte do amor.

- Então é essa mesma que queremos - disse Sebastião. - Assim um acaba aprendendo com o outro.

- Que assim seja - disse Dona Marta, olhando para a sala ao lado - Fátima, o rapazinho é seu. Trate-o bem pois o moço ainda é donzelo.

Sempre era uma festa quando surgia um cliente novo na casa. As meninas tratavam de agradar o moço para ganhar o serviço. Além de ser uma grande responsabilidade fazer um menino virar um homem, o serviço custava mais caro. Desta vez não adiantou muito, os tios já tinham escolhido.

Carmen ficou com ciúmes, mas logo esqueceu. Ela era uma das mais experientes da casa; já havia perdido a conta de a quantos moços ensinara os prazeres da vida. "Fátima está no caminho certo", pensou ela. Olhou para ela e sorriu com um ar de aprovação.

Mirtes não gostou da escolha. Ela conhecia muito mais da arte. Além disso, estava precisando do dinheiro; tinha gastado muito na última viagem para a casa de sua mãe. Precisava trabalhar em dobro para não ficar devendo pouso e comida para Dona Marta.

Lourdinha, Marta e Lucélia ficaram felizes. As três eram como irmãs, sempre fazendo as coisas juntas; bem, nem sempre. Vieram na mesma época para a casa de Dona Marta e se divertiam muito. Planejavam juntar dinheiro e ir para uma casa melhor na capital; sonhavam encontrar um gringo bonzinho e ir morar no exterior.

Fátima ficou encabulada; ainda não se acostumara com as coisas. Olhou para Cândido e ele estava feito um pimentão, olhando para o chão de madeira. Hesitou por uns momentos mas ante o olhar inquisitivo de Dona Marta pegou o moço pela mão.

- Você quer conhecer o meu quarto? - disse Fátima.

Um balançar de cabeça foi a única coisa que Cândido pode fazer no momento. Estava nervoso e não sabia onde se enfiar; ainda mais com toda aquela gente olhando para ele. Pensou em desistir, sair correndo pela porta e voltar para a cidade; mas o que seus amigos iriam dizer? Que era um frouxo, um maricas? Nem teve tempo de pensar direito e Fátima já estava puxando-lhe pela mão através da porta vermelha que dava acesso para os quartos da casa.

O corredor era estreito com quatro portas de cada lado. No final do corredor ficava o banheiro e o quarto de Dona Marta. O quarto de Fátima era o último do lado direito. Pequeno, com uma janela, um armário e uma cama de solteiro encostada na parede, era pintado de amarelo claro. A pintura ajudava a dar uma aparência melhor para a construção de madeira.

Fátima entrou levando Cândido pela mão. Sentou-o na cama e perguntou se ele queria beber alguma coisa.

- Se quiser é só dizer. Aproveita que seu tio está pagando - disse Fátima.

- Não, obrigado. Não gosto de pinga - disse Cândido.

- E do que você gosta então? - disse Fátima, sentando-se do lado do moço e colocando a perna em cima de seu colo.

- Olha - disse Cândido -, eu não conheço muito bem destas coisas.

Fátima retirou a blusa de Cândido e viu o peito liso, um misto de criança e adolescente. Cândido estava imóvel e suas mãos suavam. Fátima tirou o vestido, ficando só de calcinha; os olhos do rapaz se arregalaram.

- Não se preocupe - disse Fátima -, vamos fazer as coisas bem devagarzinho. É só você ir fazendo o que eu digo e dará tudo certo.

Cândido, aumentando sua confiança, retira os sapatos e a calça, ficando somente de meias.

- Tira a meia também - disse Fátima. - Homem pelado fica feio de meias.

Em um minuto Cândido não parecia mais aquele rapaz encabulado que Fátima viu na sala da casa. Agora ele estava em cima dela fazendo movimentos contra sua pélvis. Ele chegou perto de Fátima, trazendo sua boca perto dos lábios dela.

- Nem vem - disse Fátima -, beijo na boca não!

Cândido se assustou. Achou que estava fazendo algo errado.

- Mas, por que não; o que tem de mais? - disse Cândido intrigado.

- A gente não beija na boca; só se for namorado.

- Tá bom, desculpe. Mas que eu queria um beijo, isso queria - disse Cândido.

Fátima não deixou Cândido beijá-la. O serviço até que foi bom; como a tempos ela não tinha feito. Ter na cama um rapaz novo não era comum. A maioria dos clientes eram solteirões ou velhos casados. Como todo moço que vira homem, Cândido terminou o serviço rápido, por causa da insegurança. Em menos de 5 minutos ele estava caído em cima de Fátima.

Os dois acordaram com batidas na porta. Era Dona Marta dizendo que já era hora de ir. Fátima nem notou quando caíram no sono. O peso de Cândido, ao invés de incomodar, trazia-lhe uma sensação boa de proteção. O rapaz parece ter ficado assustado novamente; colocou as calças, vestiu as meias e em menos de um minuto estava pronto. O rosto vermelho e os olhos fitando o chão mostravam que a vergonha tinha voltado.

Fátima ainda estava se levantando quando o rapaz abriu a porta do quarto e começou a sair. Antes de fechar a porta ele voltou-se e olhou-a como nenhum homem tinha-lhe olhado antes.

- Eu gostei muito - disse ele com paixão, fechando rapidamente a porta.

"Eu também", pensou Fátima.

Levantou-se ao escutar o motor do fusca. Correu até a sala e pode ainda ver pela janela o rosto de Cândido no banco de trás. Ela encontrou o seu olhar até ele sumir na escuridão.

Voltou à realidade com as vozes histéricas das outras meninas; elas queriam saber com tinha sido. Eram exigentes; queriam todos os detalhes.

- Mas você não beijou ele, beijou? - disse Mirtes, com ar de desconfiança.

- Eu? De jeito nenhum! - disse Fátima.

Daquela noite no seu quarto, quando todas já estavam dormindo pensou em Cândido e no beijo negado. "É, até que não seria má idéia", pensou ela.

Quem sabe numa próxima vez.

 
 
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