DESTINO FURTADO I
Paffomiloff
 
 
Finalmente chegamos aos pés do templo dos Piratas do Destino, após meses de lenta jornada pelas encostas pedregosas.

A nossa liteira paira a meio metro do solo, sustentada por balões de gás, pois rodas e pernas não foram talhadas para trilhar essas montanhas.

Ao meu lado, a engenheira cega vira o rosto em minha direção.

- Narrador - ordenou ela - narre o que está vendo.

"Ao fim de três dias de viagem, a partir da vila, o instinto de Bórgia, a engenheira cega, lhe informa que sua meta está próxima. Ela é uma mulher bonita, e o frio, embora esmaeça seus lábios, faz a textura da pele apessegar-se".

"No lugar das íris, ela traz duas pedras verdes, implantadas, marca de seu alto grau na Irmandade dos Engenheiros. Por isso ela é cega, e precisa do narrador, que escolheu por sua qualidade única de não emitir juízos de valores".

- Sim &- autorizou ela - prossiga.

"Na liteira que segue à nossa frente, estão o forte verdugo, que anda armado, e o guia de dezesseis anos. Ambos indicados pelo patriarca da vila sem nome, única que existe nesta montanha perdida".

"Apenas as patas acolchoadas dos cães locais podem dialogar com o terreno. Estes animais conduzem nossos leves veículos flutuantes. Eram cento e vinte, no início da jornada, e baixaram para oitenta, pois também servem de alimento, com a vantagem que não demandam esforço de transporte. Os nativos costumam chamá-los de 'alimento que ama e acompanha&'".

"A menção a tal fato fez a engenheira cega torcer a boca".

- Esses nativos são menos que animais - explicou ela - logo que a ferrovia chegar, serão mortos e substituídos por caucasianos.

"Sua imaginação se diverte com a idéia dos nativos rolando ruidosamente pelas encostas, e ela sorri, ao ouvir seu devaneio desnudado pela voz do narrador".

"As liteiras param, mas isso não precisaria ser narrado, pois a engenheira sente o tranco quando guia, rápido e eficiente, trava as âncoras nas pedras, para que o vento não arraste os veículos, calibrados para o nosso peso".

"Sob o olhar atento do verdugo da vila, o jovem guia suavizoua o terreno até a escadaria do templo, usando uma pá-picareta sônica, que pulveriza os pedregulhos".

- Ajude-me, Narrador! - ordenou a engenheira, descalçando as botas para que seus minúsculos pés sentissem o chão.

"Acompanhei seus passos suaves, calcando a trilha recém aplanada, até as pilastras do templo. Não entendo o motivo de uma cega ser tão bela, se não pode usufruir de si mesma diante do espelho. Estendeu os braços e tocou na pedra, integrando-se aos fluxos energéticos das rochas metamórficas".

- Esta construção é muito antiga - avalia ela, com seus dons paranormais - desde que foi erigida, assim me conta esta rocha, o pólo magnético da terra mudou três vezes, ou a montanha girou, o que não é impossível. Cumpra sua função, Narrador, diga-me o que está vendo!

"O templo é alto, e sua complexa cornija, cuja descrição se encontra alguns paradigmas acima de meu vocabulário, é sustentada por atlantes que não são figuras toscas de homens musculosos, senão mulheres perfeitas com roupas esvoaçantes que tocam o teto apenas com o indicador, mas que são esculpidas em pedra embora pareçam modeladas em vento", narrei.

"Felizmente a engenheira não pode ver tal beleza, pois pensaria duas vezes antes de comandar-lhe a destruição. Para isso sua visão é removida pela Irmandade".

- Para que as ferrovias fiquem acima dos oceanos gelados, que cobrem a terra, as pilastras devem ser apoiadas nos pontos mais altos das montanhas, justamente onde os antigos construíam seus templos - explicava ela. Azar do passado que o futuro não se ajoelha. Narrador, em que situação nos encontramos?

"O verdugo da vila olha estranho para nós. Não aceita que um homem obedeça a uma mulher. O jovem guia, por seu lado, me vê com gratidão".

- Qual o motivo de tal olhar?

"O narrador não poderia dizer o motivo".

Às vezes, um narrador deve enganar àquele a quem serve.

Como eu poderia contar a ela que só está viva por que, sem seu conhecimento, eu a tenho violentado durante a noite?

Há quatro dias, o patriarca da vila, ao me ver obedecendo as ordens de uma mulher cega, questionou minha virilidade, e impôs uma tarefa, que consistia em copular diariamente, sob o olhar do verdugo da vila.

Dada a escassês de mulheres, queriam que eu me servisse do jovem guia de dezessesi anos, que lembrava, embora não parecesse, o filho que perdi no mar de gelo do Texas. Optei por adormecer minha chefe, com um preparado de flor de camomila silvestre e mandrágora, e usar seu corpo suave, salvando nossas vidas.

O cinturão de castidade eletro-mecânico, que as engenheiras envergam, deveria protegê-la, mas enganei o sensor, usando um dispositivo preservativo, que recuperei numa jornada à cidade submersa de Brasília.

Ela nem desconfia o motivo pelo qual um verdugo nos acompanha. Durante o dia, na liteira deixo meus olhos se deleitarem com a visão dos lábios que beijo incógnito.

Aquela noite, contudo, talvez o verdugo da vila nos matasse, pois havia acabado meu estoque de preservativos.

- É dura demais - sentenciou a engenheira cega, roçando a estrutura atômica das estátuas atlantes - cargas nucleares seriam inúteis, antes destruiriam a montanha. Sinto também uma forte presença mística. Narrador, diga o que vê.

"Olho em torno, aproveitando a visão privilegiada dos narradores. Sobre os contrafortes, os fantasmas dos piratas de destino nos observam. Sabem que, com a destruição do templo, o destino que roubaram será perdido. Estão emitindo ectoplasma massivamente".

- Em que direção?

"O ectoplasma estende-se na direção do verdugo da vila. Ao perceber a ameaça, ele tenta correr sobre as rochas, mas, como já falei, o terreno não serve para pernas. Os cães latem, são fiéis ao mestre. Sabem que algo de mal vai lhe acontecer".

"Num momento sem respiração, o corpo envolto pelo ectoplasma lembra um casulo de mariposa".

- Ele foi possuído. Voltará para nos matar. Leve-me até a liteira, tenho uma pistola de dardos exorcizantes escondida nas minhas coisas, material obrigatório em escavações. Não tire os olhos dele, e narre o que acontece.

"O corpo do verdugo da vila se agita em frenesi, pois resiste à possessão. Trocar os pensamentos de homens teimosos é uma tarefa árdua até para fantasmas".

"Agora ele nos olha. Vem na nossa direção com a balestra armada, receio que seja nosso fim. A engenheira revista sua bolsa, nervosamente. As palavras do narrador arrebatam sua tranqüilidade costumeira. Não sabe se deixou a pistola na vila, ou se foi roubada pelos vilões".

- Se não estiver aqui, com certeza foi roubada. Continue narrando.

"O possuído já se encontra em distância de tiro. Não errará, pois mira em meu peito".

"Nem bem preparei minha última oração, a figura do jovem guia se interpõe na trajetória da flecha, morrendo em meu lugar. Seu corpo é jogado na direção da liteira".

"O narrador avança para o verdugo, que gira a manivela de tensão da balestra para recarregá-la, mas antes de conseguir apanhar a flecha, olha para cima, e vê a pedra de vinte quilos, preparada para esmigalhar seus miolos. Imobiliza-se e ri. Terá enlouquecido, ou sabe de algo que o narrador desconhece?".

"Desconfiado, o narrador vê o corpo do guia que o salvara. Sua queda soltara as amarras da liteira dos passageiros, que está sendo arrastada pelo vento, levando a impávida engenheira cega".

"O verdugo possuído não ataca o narrador. Seus olhos vazios emitem o brilho místico".

- Não posso mais matar você - ele se dirige ao narrador - pois este garoto roubou seu destino.

"Aproveitando aquela estranha trégua, os cães atacam e estraçalham o velho mestre, para livrar seu espírito teimoso da possessão, e depois o comem, pois este é o costume, nestas montanhas, que não reprovo, pois a comida é escassa e arisca, e não costumo emitir juízos de valores, estes fardos em terras estranhas".

"Bem alimentados, os cães encostam seus focinhos ensangüentados nas pernas do narrador, em busca de carinho, pois o adotaram como novo protetor."

"Mas o narrador só tem olhos para o ponto escuro, que se afasta na direção do ocaso".

 
 
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