ARMANDO PERDEDOR
Jorge Silva
 
 
A luz fraca do candeeiro a petróleo titubeava à mínima brisa. E a velha casa, pejada de frestas, não ajudava. Soprava a toda a hora, num permanente assobio, o prenúncio da decadência de uma família comum.

Há muito deixara de haver disponibilidade para contrariar o normal desgaste da habitação. Era agreste, o clima dali. E o dinheiro não abundava. Armando penava, olhava para os seus, enregelado. Mas sorria, a cada instante. Não queria apoquentar mais a sua Luísa, coitada. Olhar triste e sorriso forçado, ela pousava a vista de novo no complexo bordado. E em silêncio cruzava as linhas com que cobriria as mazelas de uma mobília cansada de servir.

Armando não encontrava forma de dar a volta à situação. Sentia-se encurralado pelo destino, agrilhoado a uma tendência de miséria que rejeitava mas pressentia, bem próxima. Imaginava-se uma vítima inocente da conjuntura infeliz. Sofria, também. E escondia qualquer lágrima teimosa por detrás de um jornal do dia anterior. Águas passadas.

As crianças dormiam, serenas, sob um improviso em madeira que as resguardava do frio. Uma parcela de barraca, encaixada na parede mais próxima da lareira que há muito deixara de aquecer. Era uma ilusão, tal proximidade, mas convencia os pequenos de que algo ainda ardia por ali. Adormeciam quentinhos porque queriam acreditar que tudo se mantinha como dantes, quando a vida era fácil e despreocupada.

Armando queria muito ser feliz, sem reservas. Todavia, a confrangedora situação a que haviam chegado criava embaraços a todo o instante. Eram coisas pequenas que faltavam, mas é precisamente dessas que se nota a ausência quando quase tudo escasseia. E a culpa era toda sua. Armando jogava e Armando perdia.

Todos os dias, por volta da mesma hora, pouco depois do jantar, tresandava impaciência, circulava pela sala em silêncio e congeminava um pretexto melhor, uma história diferente para explicar à família a inevitabilidade da sua ausência. Uma justificação impossível de encontrar.

E ele espreitava pela janela, desesperado, em busca de uma genial inspiração. Quase sempre, acabava por desistir. Lançava a Luísa um sorriso triste e despropositado, que a esperança nunca morria. Já nem conseguia reunir coragem para tentar tocá-la, comprometido. Só beijava as crianças e recebia pouco entusiasmo em troca, todas percebiam o teor da maldição.

Contudo, o demónio parecia apoderar-se-lhe do juízo sempre que na cabeça lhe soavam os guizos da irresistível tentação. Vergava-lhe a consciência, moldava-a ao sabor do conforto de que Armando necessitava para suportar as consequências de si, da influência nefasta que exercia no destino dos seus. A imaginação que lhe faltava nas desculpas para saír, para delapidar tudo o que encontrava de valioso na adrenalina de um serão entre muitos, gastos a alimentar um vício arrebatador e maligno, sobrava-lhe em adaptações de ordem moral duvidosa na frágil estrutura do seu arrependimento. Os limites nunca estabilizavam, antes avançavam cada vez mais distantes, cada vez mais para além do que a prudência aconselhava.

Abaixo de nada, não existe prejuízo algum - afirmava.

Seriam os familiares, os amigos íntimos e, mais tarde, os vizinhos e simples conhecidos a suportarem o engano evidente de tão trôpega equação. Muito depois do colapso total das contas domésticas, Armando continuaria agarrado à pá com que cavava no desespero a sua própria sepultura social, com a assembleia de credores convocada para o velório.

Não tardaria a ficar só, mais a mulher e os filhos, no vórtice do furacão.

Nessa noite saiu de casa imbuído da maior fé. Sentia-se ganhador e obtivera um bom negócio com a torradeira oferecida a Luísa no Natal anterior, penhorada como o resto, no sítio do costume à hora da abertura. Luísa já sabia, mas nem reagiu, habituada que estava a esse tipo de desaparecimentos precoces no recheio da habitação. Às prendas já nem ligava, era ele quem desembrulhava as ofertas precárias, cheias de boas intenções, e prometia para breve a reviravolta que pressentia. Ela não acreditava, ignorava, desde o dia em que a paciência acabou. Nem um beijo lhe aceitava.

E esse era o maior objectivo de Armando, quando no final de uma noite memorável de jogatana o balanço lhe devolveu tudo quanto perdera até então. Acrescido de uma boa maquia, à guiza de juros, para compensar o transtorno. No caminho para casa, inebriado de euforia, Armando só imaginava o beijo que selaria a inevitável reconciliação. Sentia-se antecipadamente perdoado.

Entrou pela casa em festa ao raiar da aurora, contente em demasia. A família de Armando já não morava ali, nem voltaria a dar conta do seu paradeiro. De braços abertos no centro da sala, notas amarrotadas nas mãos, Armando viu no espelho reflectida a imagem do futuro que lhe estaria reservado a partir desse momento: a de um velho que morreria sozinho, frustrado, numa espera patética pelo beijo de despedida que nunca chegaria a receber.

 
 
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