A
ESPELUNCA
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Rosi
Luna
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As
vontades são como águas escorragadias de corredeiras, jorram com profundidade
e têm uma vertente ligada às veias que saem do coração e se ligam na cabeça.
Precisamente no lugar do cérebro onde vivem as emoções. O assunto foi surgindo
assim lentamente, como gotinhas de água caindo da tal fonte dos desejos,
e a pauta seria descrever um momento de amor - o mais inusitado. A mesa
do café estava animada e as amigas fizeram uma aposta, valendo um vestido
de seda chinesa, daquele modelo tradicional abotoado na lateral do pescoço,
para quem contasse a melhor história.
A Flora começou, e acreditava que sua história de amor passada naquele hotel cinco estrelas, com banheira com mais de mil botões e aquela cama que de tão grande quase caberia um gigante lá, iria vencer em disparada. Mas ela não foi feliz na forma de contar, não havia romance, era tudo muito frio como azulejo e não agradou muito. A Teca contou de uma vez, que foi para uma casa com lareira no meio do mato. E nossa! O seu relato foi uma novela tão mexicana que o simples ato de acender o fogo quase se transformou numa tragédia. Quando eles conseguiram, estavam tão vencidos pelo cansaço e pelo cheiro de fumaça de jornal queimado que o sexo nem rolou e tudo ainda acabou em briga. Porque a Teca tinha esquecido de colocar na bagagem uma pedrinha que se chama "fogo mágico" e iria poupá-los de todos esses infortúnios. A Teca também falou tanto da paisagem que esqueceu o principal: as pessoas e o envolvimento delas. A Liliana foi a última, e não perdeu sua chance e contou tudo, desde o começo e foi mais ou menos assim: Sempre gostei de brincar de fadinha ou putinha, na vida sempre me ofereceram as melhores camas e melhores lençóis, afinal para o amor todo aparato é válido. Mas faltava uma experiência única, que movimentava minha fantasia, faltava conhecer um lugar desses suspeitos, hotéis freqüentados pelas ditas mulheres da vida. Gosto muito da palavra, meretriz, me lembra uma mistura de mérito com atriz. Talvez seja isso que uma puta é - tem o mérito de trabalhar com sexo e é uma atriz fingindo prazer por exigência do cliente. Encontrei o meu namorado no lugar combinado e o apanhei de carro, não sei como errei o trajeto e fui parar no centro da cidade, numa rua de comércio de motocicletas.Aquela visão de motos agrupadas mexeu de imediato com minha cabeça, minha libido. Me deu uma vontade de montar imediatamente, e não era numa moto e sim em um homem. Para as mulheres não são permitidos esses tipos de pensamentos tão baixos, mas ver aquelas motos ali, e com tantas peças penduradas, me deu a nítida sensação de liberdade e que eu precisava soltar minha fantasia, fazer o que queria e que se danasse a sociedade. Nós não tínhamos almoçado, tinha um cheiro de fruta no carro e fiz a mesma pergunta duas vezes: "quantas goiabas tem aí?". Ele respondeu que tinha três goiabas e que me daria uma, na hora que eu quisesse. Paramos em frente a um lugar que eu o batizaria carinhosamente de "a espelunca". Putinha que se preza tinha que chegar com um batom vermelho e tratei logo de deixar minha boca em ponto de incêndio. O lugar era como tinha imaginado toda minha vida e nunca tinha entrado. Uma escadaria comprida, pouca luz e uma grade no final. O pagamento foi adiantado. A sensação de ser putinha era muito prazerosa, ele pagou como um cavalheiro sempre faz. E acho que pelas nossas vestimentas ou talvez pelos nossos óculos escuros, perceberam que éramos dois jovens procurando prazeres inusitados, e que nos deram o deveria ser o melhor quarto. A cama era redonda, com um lençol com enormes estampas de muito mau gosto. O mais engraçado foi ver um ventilador numa jaula. Isso mesmo: ele estava lá preso como um animal. Não deu pra segurar a risada, e nem a fome. Pedimos um refrigerante e tomamos com dois canudinhos na mesma latinha, que mais pareciam os fios de spagetti da cena do desenho animado da Dama e o Vagabundo. Minha história de amor foi assim numa espelunca, e lembrei de Chico Buarque, do balé O Grande Circo Místico - A História de Lily Braum "nunca uma espelunca, uma rosa nunca, nunca mais feliz". Não lembrei de comer a goiaba, lembrei só de ser feliz. Ele tirou minha roupa me beijando. No espelho da cama redonda, sintonizamos numa rádio dessas que tocam músicas próprias pra quem está se amando, do tipo baladas suaves. Minha calcinha era branca, com pequenas florezinhas, e acho que ele pensou ser um jardim. Me beijou tanto que minha flor foi se abrindo e ele sorrindo e nos amamos muito. A luz natural entrava por um basculhante, meu corpo se transformou numa silhueta linda. Ele tem uma mania louca, de ficar contemplando meu corpo, e eu fico vermelha sem me acostumar com isso. Ele deslizava aquelas mãos e me apertava com força e fui me derretendo como açúcar na frigideira. Tá vou contar: teve uma hora, em que já estavamos brincando de moto e naquela posição sabe - barriguinha pra dentro, bundinha pra fora - e os movimentos ficaram intensos. E falei no seu ouvido "quer que eu seja fadinha ou putinha?". Ele gritou "putinha" e fui tomada por uma força estranha, até o meu linguajar mudou, ele delirava. De repente, ele interrompeu tudo e pegou no meu rosto e disse "que amava meu olhar". E ainda deu tempo de ouvir ele balbuciando "meus olhos verdes, meus olhos, esses olhar me mata". Por um momento pensei em fugir dali, sair correndo, ele não estava me vendo, meus olhos eram pretos, duas jabuticabas enormes, como ele podia estar falando assim? Olhei para o ventilador na jaula e me senti aprisionada também pelos braços dele. Não tinha como sair daquela situação. E foi quando ele lembrou de me falar do seu problema novamente. O Gui era daltônico, ele já tinha me dito e, esquecida, não gravei. Então foi assim que a espelunca ganhou um colorido diferente. O Gui me vê diferente e talvez eu seja mesmo, gosto da forma trocada como ele enxerga as cores. Eu vejo normal, mas tem horas que me recuso a ver da forma que o outros enxergam. Outro dia a gente ficou discutindo a cor do ventilador preso na jaula, não lembro se era branco ou caramelo. O Gui pediu pra eu fazer uma nova surpresa, e dessa vez vou usar o vestido de seda chinesa, quero que ele me abrace muito antes de tirá-lo. Isso se eu ganhar a aposta, claro. A Teca e a Flora ficaram sem ação, me falaram que o vestido é meu, e que minha história parecia uma corredeira, as idéias fluíram. Ganhei a aposta, elas acreditaram em tudo, menos no ventilador preso na jaula. Acham que inventei essa parte, mas juro que ele estava lá. Posso até dizer os detalhes, tipo era uma jaula feita de alvenaria, a parede era cor-de-rosa e tinha um cadeado. Acho que o pessoal que freqüenta espeluncas, gosta de levar ventilador como souvenir. Daí prenderam o pobrezinho e ele virou um espectador giratório dos casais que se amam. Agora nem vem me perguntar a cor da cama redonda que não lembro. Mas acho que era vinho... |