A COR DA INVEJA
Roseli Pereira
 
 
Todos os meus quatro leitores estão cansados de saber que eu só ligo o computador pra falar da vida alheia. Mas como o tema da semana é "olhos verdes", resolvi abrir uma exceção. Afinal, sou proprietária de dois. E dos grandes.

Modéstia à parte, eu já tive olho de tudo quanto é cor nesta vida. Sem nunca ter colocado uma lente de contato, diga-se de passagem.

Pra começar, nasci com um olho azul e o outro preto. Fato este, aliás, que desencadeou uma grave síndrome respiratória na família. As pessoas chegavam na maternidade, olhavam pra mim e começavam a suspirar. Mas para a preservação do oxigênio na face da terra - já que estamos falando de narizes um tanto avantajados - isso só durou até que o hematoma causado pelo fórceps sumisse. Nesse meio tempo, porém, meu pobre olhinho foi passando por toda a escala cromática de que um hematoma decente é capaz.

Cresci com os olhos bem azuis, assim como noventa e nove por cento dos narigudos supracitados. Graças a isso, passei a infância e a adolescência inteirinhas protegida por aquela sensação de segurança emocional de que as crianças e adolescentes tanto precisam. Sim, eu me sentia integrada. Me sentia parte de um grupo especial, que até hoje se diferencia de todos os demais por não enxergar um palmo adiante do nariz quando o dia está muito claro. Ou ao entrar na padaria.

Foi assim que eu consegui me livrar impunemente das aulas de vôlei, de basquete e de tantas outras atividades cansativas ao ar livre. Afinal, ninguém havia tido, ainda, a brilhante idéia de inventar aqueles óculos especiais para desportistas. (Obrigada por isso, meu Anjo da Guarda.)

Foi assim, também, que muito cedo eu comecei a apreciar a penumbra e o escurinho. Mas isso é uma outra história, que fica para uma outra vez. Porque a continuação desta história aqui é a estranha mutação pela qual eu passei quando tinha uns dezessete ou dezoito anos.

Tudo começou no pátio na faculdade, quando alguém me perguntou se os meus olhos eram azuis ou eram verdes. Respondi que eram azuis de bate-pronto. Uma pergunta dessas, por óbvio, só poderia partir de uma pessoa com problemas de daltonismo. Mas fiquei com aquilo na cabeça e quando fui ao banheiro aproveitei pra conferir: o azul estava lá, como de costume.

Só que, daquele dia em diante, a pergunta foi ficando cada vez mais freqüente. E já que as lâmpadas de todos os banheiros do mundo sempre me mostravam olhos azuis, meti um espelhinho na bolsa pra pegar o verde em flagrante. E peguei.

Passei meses a fio vigiando os meus olhos, que insistiam em ficar verdes ao sol e azuis em qualquer outro lugar. Lutei para não entrar em crise de identidade. Mas nada conseguiu impedir que eu sofresse muito com a questão. Especialmente no dia em que um casal de biólogos respeitados no meio científico decidiu investigar o por quê daquela mudança de cor.

Eles me pegaram desprevenida na cozinha, me encurralaram, me sentaram num banquinho, levantaram a minha cabeça, arregalaram os meus olhos com os dedos e me atacaram com uma lente de aumento enorme e uma lanterna que tinha cara de holofote. Tudo isso só pra descobrir que eu tinha uns pontinhos amarelos lá dentro. Mais elementar, impossível. Porque, pelo menos até onde a minha vista mutante alcança, azul só consegue se transformar em verde quando tem algum amarelo metido na história.

Mais tarde eu percebi que os pontinhos estavam crescendo, porque os meus olhos ficaram verdes de vez. Depois eu deduzi que pararam de crescer, porque os meus olhos não ficaram amarelos. O que, convenhamos, teria me deixado com uma aparência bem exótica.

Mas tirando o susto da família, a fotofobia, a preguiça para os esportes, o desconcerto do flagrante, a dor da descoberta e alguns bifes torrados, a única queixa que eu tenho contra os meus lindos olhos é que nunca fui paquerada por causa da cor deles. E confesso que fico roxinha de inveja sempre que alguém me diz que já foi.

 
 
fale com a autora