CANÇÃO DE AMOR
Marco Aurélio Brasil Lima
 
 
Quando lembro de 1998 acabo lembrando também de Cyro dos Anjos. Aquele escritor mineiro que todo mundo devia conhecer. É que pela boca do personagem que deu nome à sua obra prima, Abdias, ele disse algo mais ou menos assim: "há algo no olhar do homem que pertence à essência das coisas que não perecem."

A Bíblia diz que fomos criados para não morrer, essa era a idéia de Deus. A gente é que melou o jogo. A gente é que inventou a morte. Mas aquele tal "algo no olhar" ficou e daí mil e uma dores e engasgos por ver que as coisas sobre as quais pousa o olhar morrem, se desfazem, obedientes até as últimas conseqüências à marvada lei da entropia.

E lá por maio de 1998 eu estava sentindo as dores e os engasgos. Havia terminado com a Simone. Não era só um fim de namoro, era um fim de namoro justamente na fase que eu buscava algo que fosse mais compatível com a "essência das coisas que não perecem"... Eu estava cansado daquilo que outrora fora meu maior prazer, o velho processo de aproximação-paixão-adequação etc e só de pensar que pra chegar na tal da estabilidade precisaria começar tudo de novo, do zero, a minha garganta apertava.

Um dia que essa tristeza estava batendo com força demais, que eu estava parecendo personagem daqueles filmes de realismo italiano, tipo Ladrões de Bicicleta, lembro bem que eu estava chegando ao trabalho tão animado quanto aquela hiena Hardy ("ó céus, ó vida"), tirando o paletó eu parece que ouvi no meu ouvido uma frase familiar: "não temas, crê somente". Puxei pela memória pra entender de onde vinha isso. Lembrei da história: Jesus fora chamado por um cidadão para ir até a casa dele curar a sua filha que estava doente. No meio do caminho aconteceram umas coisas que o atrasaram, e então chegaram os servos do tal cidadão dizendo que ele não precisava mais incomodar Jesus, a menina estava morta. Foi nessa hora que Jesus disse o "não temas, crê somente". Coisa estranha para se dizer a um pai desesperado. Podia ter aberto o jogo logo: "fica frio, eu vou lá e ressuscito sua filha", como acabou acontecendo, mas no lugar veio aquele "crê somente". Creia antes das evidências.

A verdade é que a lembrança dessas quatro palavrinhas teve a força de defenestrar a tristeza. Decidi tocar a vida despreocupado, a coisa agora era problema dEle. E comecei a fazer planos mirabolantes de estudar no exterior e outras coisas do tipo "virando a própria mesa".

Só não contava com aqueles olhos verdes que chegaram de repente e me quebraram as pernas. Diferentes dos outros olhos verdes que eu conhecera antes, naqueles havia um "algo" que parecia fazer um arroz-feijão com o "algo" que havia no meu e não à tôa, são eles a primeira coisa que hoje vejo quando acordo. Sem grandes crises de adaptação, sem dores de barriga de aproximação, esses olhos que atendem por Tatiana caíram-me no colo e com eles milhões de outras coisas muito boas, que tenho descoberto como quem pisa extasiado um planeta distante, um planeta sem fim, continente do universo das coisas que não perecem.

Afinal, esta é uma canção de amor.

 
 
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