DE OLHOS FECHADOS
Luís Valise
 
 

Ela não acreditava, mas estava ali e era verdade. Finalmente um homem não se aproximara dela com a desculpa dos olhos verdes. Ela já começava a detestar seus olhos verdes e a penca de lugares-comuns que vinham junto: “da cor da minha esperança”, ou “por dentro devem estar maduros”, ou “verdes que te quero verdes”, e por aí afora.

Ele não. Primeiro falou da sua voz, e isso era novo. Fascinada, soube que tinha uma voz “envolvente, acariciante”, ao mesmo tempo em que sugeria um “turbilhão de promessas impossíveis”, com o efeito de um “poderoso imã que atraía o ponteiro de todas as bússolas que levavam ao paraíso de paixões escaldantes”. Ela sorveu cada palavra com sofreguidão, e sentia-se inebriada como quando tomara duas doses de Pernod. Pediu ao garçon um Pernod.

Sentados ali, no convés do transatlântico que singrava pelos mares gregos, a luz cálida de um sol morno emprestava-lhes um tom ainda mais róseo aos rostos bronzeados. Ele estava muito elegante com seu blazer marinho de botões dourados, camisa de linho amarelo-claro, calça de sarja cáqui. Cabelos pretos impecavelmente penteados para trás, óculos escuros, sorriso de dentes muito brancos e regulares. Ela se via refletida nas lentes do rayban, e não conteve o impulso que colocou sua mão sobre a dele.

Os dedos fortes da mão máscula percorreram o dorso da mão delicada. A polpa dos seus dedos sentiram o acetinado das unhas longas pintadas de vermelho. Depois exploraram a maciez da palma até a junção do pulso. As unhas aparadas rente seguiram as linhas da vida, da saúde, do amor. Só então ele decifrou sua vida de desilusões; o polegar junto ao pulso sentiu-lhe as batidas do coração, agora em descompasso; o tremor da mão delicada denunciava o frêmito causado por aquele amor assim, tão instantâneo. Ela se descobria finalmente mulher, e não apenas um par de olhos verdes.

O som de um bolero caribenho saiu dos alto-falantes do navio. Dizia que “una mujer debe ser soñadora, coquetta y ardiente, debe darse al amor con frenesi y ardor, para ser una mujer”. Perguntou se ele queria dançar. Sentiu-o vacilante. Tomou a iniciativa levantando-se e puxando-o pela mão até a minúscula pista de dança vazia. Aconchegou-se junto ao peito largo sentindo um perfume quente. Demoraram um pouco a dar os primeiros passos, encaixando os corpos com cuidado, como quem anda no escuro.

Quando a música terminou ainda se deixaram ficar abraçados. Ela pediu-lhe que falasse um pouco sobre si. Ele chegou a boca bem perto da sua orelha e falou, baixinho:

O fundo dos meus olhos redondos
Guardam coisas do mundo.
- Quem quer descer?
Meu peito é morno e é brisa
Queima e cicatriza.
- Quem quer arder?

Antes que ele dissesse qualquer outra coisa ela perguntou (pediu?): - Vamos? Ele respondeu: - Deixe-me chamar o chofer. – Jackson! Por instantes ela ficou assim, meio abestada. Então viu surgir por entre as cadeiras um cão labrador amarelo, com uma dessas coleiras-guia para cegos. Passou-se um tempo que ninguém jamais saberá quanto foi. Homem, mulher, cachorro, os três numa cena congelada. O homem segurou a coleira do cão. A mulher pegou na mão do homem e deixou-se guiar. No caminho não resistiu: - Adivinha de que cor são meus olhos?

 
 
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