DÍVIDA
Kleber Carrilho
 
 
Vou contar uma daquelas histórias que qualquer um já ouviu. Serei breve. Tem pai, mãe e filho. E possivelmente mais alguém. A única coisa que esta tem de diferente é que aparece também uma santa: Santa Clara.

Para quem não sabe, Clara é a padroeira da televisão. Coisa estranha para uma mulher que viveu há mais de trezentos anos. Dizem que foi ela quem assistiu à primeira transmissão ao vivo da história. Uma novena, eu acho. Viu uma tela na cela onde estava doente, nas últimas. E algum dos papas mais recentes achou que ela devia ser a padroeira da televisão. Acho que ela adoraria, se tivesse conhecido o objeto. Principalmente as novelas. Conversei com uma freira dias atrás e ela me confessou que adora novelas. Pode?

Mas tudo bem, voltemos à história. Maria Alice e João Francisco. Há uns trinta anos, casaram-se. Como já tinha televisão naquela época, planejavam ter somente um casal de filhos. No primeiro ano, usaram os devidos métodos da época, inclusive a novata pílula, para que nenhum choro importunasse as transmissões. E deu certo. Nada de bebê.

Porém, depois do primeiro ano, como todo bom casal daquele tempo, optaram por parar de evitar. Queriam o primeiro pimpolho. Planejaram, tentaram, marcaram os dias certos para as tentativas. Nada.

Como a gravidez não acontecia, João Francisco fez uma promessa a Santa Clara, de quem sua mãe era devota. Mandaria rezar não sei quantas missas à santa quando o filho nascesse.

E Maria Alice engravidou depois de alguns anos de tentativas. Seis, para ser mais exato. Como resultado, um menino lindo.

O único problema era que uma penugem loira cobria a cabeça do bebê. E dois olhos verdes enormes procuravam conhecer o mundo. Porém, tanto Maria Alice quanto João Francisco eram morenos. Não tão morenos, mas nada que lembrasse cabelos loiros e olhos verdes.

A mãe de Maria Alice recordou-se de um avô, que João Francisco não chegou a conhecer, que era exatamente assim: loiro de olhos verdes. E, como ele se chamava Felisberto, achou que seria o melhor momento para uma homenagem.

Ressabiado, João Francisco aceitou. Rendeu a homenagem no dia seguinte, no cartório da Vila Prudente.

A menina, que completaria a dupla de filhos planejada no início do casamento, sumiu das conversas do casal. Felisberto cresceu como uma criança qualquer. Quando alguém perguntava o porquê da diferença, lembravam-no do antepassado. Coisas da genética. Hoje, ninguém pergunta mais nada. Ganhou até um apelido: Felis (ou Feliz, pois no final das contas fica tudo igual).

Maria Alice e João Francisco assistem à televisão juntos até hoje, quando ele volta do trabalho. De vez em quando, ainda fazem alguma outra coisa. Não se sabe se ela evitou, mas nunca mais ficou grávida.

Dia desses, João Francisco viu uma mulher gritando no Ratinho, dizendo que queria exame de DNA para provar que um borracheiro era o pai da criança que carregava no colo. Maria Alice trocou de canal rápido. Disse que preferia assistir à novela no cinco.

Se algum pensamento veio à cabeça de João Francisco, não sei. Só sei que Santa Clara não teve a dívida paga até hoje.

 
 
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