PERSONAGEM DE FICÇÃO
Jorge Silva
 
 
Acredite ou não, escrevo estas linhas sentada no lugar número 532-A de um vaivém espacial. Vou a caminho da mais remota plataforma comercial instalada pela humanidade até a data, perto de Júpiter, e sou recepcionista de um grande revendedor de objectos antigos e valiosos, embalagens raras de um material extinto, o plástico, feitas à base de resíduos de petróleo, essa substância em tempos fundamental na vida de cada um. Esses tempos eram outros, de facto. E eu não lhes pertenço. Chamo-me Dilmira. Para si, sou uma mulher do futuro. Uma personagem de ficção...

Ao contrário do que você (que por mero acaso acabou destinatário desta mensagem) possa julgar, a democracia, a liberdade e muitos outros valores que se pensavam perpétuos não prevaleceram no culminar desastroso de uma série de acontecimentos que não revelarei (para evitar que as minhas palavras possam influenciar a sua tomada de decisão...). Em última análise, uma atitude sua pode muito bem impedir que eu escreva estas linhas, mais tarde. Isso é o que afirmavam alguns teóricos do tempo, no seu. Mas posso adiantar que a tenebrosa conjuntura que hoje me penaliza tem tudo a ver com o fim das reservas petrolíferas mundiais, deliberadamente incineradas na insensatez de um conflito qualquer. Enfim, se está a ler o meu envio tudo terá corrido bem. Ou talvez não, nem sei... Se tivesse corrido mesmo bem, talvez eu não precisasse de escrever este apelo.

De qualquer forma, é bom sinal para mim, até ver, pois é absolutamente proibida a emissão de mensagens neste formato, um privilégio exclusivo da elite pensadora que gere os destinos da minha versão do mundo. Onde as mulheres não têm autorização sequer para pensarem. Pelo menos, em voz alta, ou com registos que possam ser partilhados com alguém. O que estou a fazer é proibido e pode conduzir-me ao açoitamento público com verdascas envenenadas. Pode ser o meu fim.

Nem sei bem o que se passou de concreto para as coisas evoluírem desta maneira, o episódio que originou um desfecho assim. Constou-me até que num dado momento as pessoas como eu, do sexo feminino, chegaram a governar nações que nessa época existiam. Mas se calhar é mentira, fantasia de líricos, subversão. O que sei é muito pouco, pois o conhecimento é propriedade dos que detêm o poder. E eles só libertam uma parcela limitada do seu saber para o exterior, sempre em benefício das teorias despóticas que mergulharam a Terra neste tormento sem fim. Em nome de um Deus que nunca lhes admitiria tamanha loucura.

Eu nem deveria estar aqui, a caminho do emprego que me camufla actividades clandestinas de sabotagem. Fiquei escondida da vida durante toda a infância. E agora vivo disfarçada de gente, de homem, cabelos pintados de preto e umas estranhas membranas gelatinosas, castanhas, enfiadas nos olhos e que me toldam seriamente a visão. São graduadas, informou-me o técnico que as conseguiu recuperar, depois de roubadas de um museu. Eu via bem sem elas, mas tal como escondo o facto de ser mulher, tenho que ocultar o outro pecado da minha condição: o verde dos olhos que me trai. Vejo pior, bem sei, mas o mundo que construíram para mim nesse tempo tem pouco de bom para se ver.

É esse o alerta que pretendo mandar a quem venha a receber esta mensagem. Já não existe à face da terra ninguém com olhos azuis, todos foram exterminados aos poucos com base num pretexto idiota qualquer. E com olhos verdes, só resto eu e umas dezenas de infiltrados que também conseguiram escapar ao genocídio que na sua primeira forma, mais moderada, chamavam apenas descriminação.

Os Quinze Livros da Revolta, a preciosa herança que transmitimos de geração em geração, constituem a biblioteca que restou desses dias e que nos permite ter a certeza de que no seu tempo, para onde programei a chegada destas palavras, existem condições para alterar geneticamente a cor dos olhos de uma pessoa. Essa tecnologia perdeu-se, nos escombros fumegantes da civilização que a criou. Outras deixaram o rasto suficiente para alguém as desenvolver, como a que me permite agora, mão esquerda enfiada no bolso largo das calças, tactear discretamente num teclado a minha enésima tentativa de encontrar alguém capaz de evitar este horror.

Junto à cabina de pilotagem vejo dois vigilantes armados do departamento fiscal, a apontarem na minha direcção. Devo ter chegado ao fim do caminho, apanhada pelos detectores de ondas eléctricas que presumo terem interceptado esta comunicação. Tarde demais, pois acredito que a potência dos transmissores permitirá que esta ou outra mensagem chegue finalmente ao seu destino.

Resta-me dizer adeus e accionar o detonador que destruirá este transporte e todos quantos nele viajam. Antes, porém, deste sacrifício em nome da Liberdade de Expressão, dou-lhe dois conselhos finais: conserve, religiosamente, todos os livros que possua.

E nunca se desfaça do seu conjunto Tupperware.

 
 
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