ARTE
VIVA COM MENINA MORTA
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Fernando
Borba
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Quando
Luciana se tornou a melhor aluna do Colégio, Marna lhe pediu umas aulas
particulares. Era a mais atrasada da turma, faltava por qualquer motivo
e não acompanhava o programa. Sabia-se que era uma garota rica, mas nunca
falava sobre sua família e por isso se construíam lendas: a mãe era uma
deficiente mental, o pai um famoso artista boêmio, processado por escândalos.
Para o primeiro dia de aula, o pai de Marna veio buscá-las. O carro entrou pelos grandes jardins da mansão, percorreu trilhas ladeadas por jarrões, plantas, esculturas. No terraço, a mãe imobilizava-se numa cadeira de balanço, com um sorriso inexpressivo nos lábios, ensimesmada e silenciosa. O pai mostrou rapidamente as primeiras salas da casa e levou-as até uma construção de concreto e vidro à beira do rio que limitava o terreno. Era o seu estúdio - e só então Luciana o reconheceu: Hernando Soliz, o grande artista plástico, celebrado por tantos prêmios, álbuns, documentários. Luciana disse que tinha visitado uma exposição dele no Museu de Arte Moderna, há uns quatro anos. "Sim, 'As Máquinas', uma coleção que mostrei quando trouxe da Europa. Mas você devia ser uma criança, então." "Naquela exposição teve uma visita coletiva do colégio, levada por Tante Lecerf, mas eu não fui" - disse Marna. - "Detesto badalações. Luciana tem quinze anos, Nando." Ela rodeava as pranchetas, os cavaletes, exibindo as esculturas e os quadros espalhados pelo estúdio. "Aquele nu sou eu!" - gritou, mostrando um esboço sensual preso na parede, em lápis cera, muito colorido, destacando seus grandes olhos verdes. "Gostaria que você desse um jeito em Marna" - disse Soliz. - "Faça com que ela passe de ano e se organize mais." "Acho que ela vai conseguir. Ela é muito inteligente, senhor Soliz." "Nando. Chame ele Nando." - fez Marna. Foram até a saleta do estúdio onde seriam a aulas. Esquadrias de vidro abriam para a varanda, uma grande laje suspensa sobre as águas cor de chumbo do rio. Marna não acompanhava as lições, falava em roupas, em músicas, em seriados de TV, em viagens. "Você já esteve em Paris? Eu já. Da última vez tive uma briga com Nando lá e voltei sozinha." Luciana se interessava a contragosto por aquelas conversas, e aos poucos ia conhecendo a personalidade dispersiva da amiga. Uma tarde chegou Ivone, a modelo. Nando pediu que Marna e Luciana fossem estudar na casa, pois queria se concentrar nos primeiros apanhados do nu. Tomada de surpresa, Marna consentiu. Passou toda a aula num estado de terrível nervosismo, até pedir que Luciana se fosse, e trancou-se no quarto. Na outra tarde, quando Ivone chegou para a segunda sessão de modelo vivo, não quis sair do estúdio nem deixou que Luciana o fizesse. A moça, vestida, esperava em silêncio. Pai e filha discutiram. A infantilidade de Marna explodiu em referências estranhas: "Não pense que está em Paris, ouviu?" "Calma, que bobagem é essa?" - fez Nando, constrangido. "Essa perua também não é aquela puta francesa. Ela não vai passar todo mundo pra trás." "Calma, filha." "Seu tarado velho. Seu fingidão." A modelo, uma profissional séria, continuava sentada no tamborete, os olhos cravados no chão. Marna, arrastada para fora, parecia uma torneira que se rompe, entre pontapés nas cadeiras, nos objetos. Levada a custo para casa pelas empregadas, passou pela mãe que olhava sem ver, numa cadeira do terraço. Marna foi posta na cama e tomou um chá que lhe trouxeram, sufocada num choro convulso. Luciana sentou a seu lado e ficou afagando seus cabelos. "Eu vou morrer, Lu, eu sei disso." "Que nada, Marnuca. Essas coisas acontecem em toda parte." "Ele é um monstro. Um monstro." Luciana pressentia que alguma coisa desafinava ali, mas tinha de esperar que as peças do jogo se encaixassem. "Dia desses foi com Esther, você sabe, aquela guia turística. Ele a conheceu nos monumentos de Olinda." Luciana sabia: uma bela negra de vinte anos, cabelos em trancinhas, boca oval de lábios espessos, alta, a pele cor de um pneu novo e fosco. Mas o que teria a ver Esther com tudo aquilo? "Esse criminoso a trouxe para cá e disse que ia me matar quando me enjoasse. E também se alguém viesse a saber." Uma história disforme e pegajosa como uma grande aranha mortífera tentava se arrumar na mente de Luciana. Marna, e o pai, e as outras. Enfim, a garota adormeceu entre soluços e Luciana foi para casa. Uma tarde quente e estressante. Luciana chegou muito cedo e foi deitar numa das redes da varanda, a olhar o rio de águas paradas. Em pouco Nando veio e sentou em sua poltrona predileta, retomando um trabalho que há dias vinha esboçando na prancha portátil. Quando Marna entrou, rodopiou um bocado em torno do pai, rindo muito e esforçando-se para olhar o desenho que ele fingia esconder. De repente, Nando a segurou pelo braço e a pôs em seu colo, atrapalhando o esboço e fazendo cair a caixa de creions. Abandonou a prancha e abraçou a filha. Roçava a barba no rosto e no pescoço de Marna e a acariciava, subindo a mão por suas coxas, entrando pelas cavas da bermuda. Luciana ainda não presenciara aquela intimidade, afagos e beijos como de namorados. Levantou sem ser vista e foi para a outra sala, olhar os quadros, as peças de cerâmica, as lâminas de litogravura nas prateleiras. Desencostou da parede um velho duratex: mostrava uma engrenagem de máquina de onde saía uma menina nua igual a Marna, os mesmos cabelos soltos, os grandes olhos verdes. Por uma fresta na porta entreaberta, conferia o jogo de carícias que Nando e Marna trocavam e que se arrastava, lento. Eles se imobilizavam em longos abraços, boca contra boca, e Luciana sentia vir dali uma vibração tensa de sexo, um prazer de amantes. Preferia que não, mas sentia uma excitação ante aquela realidade desconhecida para ela. Nando havia descido a roupa de Marna e segurava a jovem firmemente sobre as pernas. Sem querer Luciana tropeçou de encontro a uma placa de lito pouco equilibrada na prateleira, e a pedra veio abaixo com estrondo. Pai e filha olharam com espanto através da porta mal fechada e a viram. Luciana flagrou uma expressão esgazeada, os cabelos louros em desalinho, os lábios inchados e vermelhos, o olhar de um verde intenso, tão desesperado que sentiu vergonha e saiu do estúdio, fechando a porta atrás de si. Não sabia o que fazer. Afinal, atravessou o jardim quase em disparada, chegou junto ao grande portão de lanças de bronze e foi embora. |